Espécie de biografia em diários, Amy Winehouse: arquivo pessoal, com tradução de Carolina Simmer, acaba de chegar às livrarias brasileiras pela HarperCollins. Com fotografias raras da infância e vida adulta da cantora, entre turnês e momentos em família, o livro mostra o talento e o interesse de Amy pela escrita e composição a partir de passagens de seus relatos pessoais nunca antes divulgados.
Nas 304 páginas, os leitores têm acesso às lembranças da britânica e acompanham parte de seu processo criativo — desde a infância em Southgate (norte de Londres), quando originaram-se seus primeiros escritos e canções, passando pelo começo da carreira artística na adolescência, quando se apresentava em pequenos clubes de jazz, até o estrelato mundial.
Seis vezes vencedora do Grammy e uma das figuras mais complexas do cenário musical dos anos 2000, Amy foi responsável pelo que se chamou de “revolução da música soul” após o lançamento de seu primeiro álbum, Frank, em 2003. Também foi considerada uma das precursoras da “Nova Invasão Britânica” — que faz alusão ao fenômeno cultural que popularizou os Beatles e os Rolling Stones nos Estados Unidos, na década de 60, e os alavancou ao restante do mundo.
Entre o primeiro álbum e o lançamento de Back to Black, seu segundo e derradeiro trabalho de estúdio, os diários reúnem suas influências musicais e de estilo, as parcerias com artistas e produtores que admirava, além de uma série de relatos íntimos sobre os períodos em que lidava com o transtorno alimentar, a depressão e o consumo de álcool e drogas. Acompanhada de um prefácio de seus pais, Janis Winehouse-Collins e Mitch Winehouse, a obra entrelaça os bastidores de sua carreira e a vida mais reservada de Amy, que morreu devido a uma intoxicação por álcool em julho de 2011, aos 27 anos.
A Quatro Cinco Um preparou uma playlist com as canções preferidas da redação para ouvir enquanto se lê. Dá o play e leia o trecho a seguir.
Trecho do prefácio de ‘Amy Winehouse: arquivo pessoal’
O primeiro amor de Amy foi a poesia. Enquanto ainda morava com Janis, ela ficou obcecada por haicais — minipoemas japoneses formados por três versos com cinco sílabas no primeiro verso, sete no segundo e cinco no terceiro. Quando começou a escrever os próprios poemas, sempre contava cada sílaba, fazendo o mesmo com suas letras mais tarde. Os leitores notarão sua atenção aos detalhes nesta coleção de lembranças pessoais dela. Palavras e frases eram riscadas e substituídas conforme ela aperfeiçoava cada verso até estar completamente satisfeita.
Mais Lidas
Até hoje, é comum nos perguntarem se Amy nos mostrava suas letras ou tocava suas músicas para nós antes de gravá-las e, em geral, a resposta é não. Assim como as obras que produzia no quarto, Amy era tão reservada que só compartilhava seu trabalho com alguém quando estava 100% satisfeita com ele. Foi só quando seu primeiro álbum, Frank, estava prestes a ser lançado, em outubro de 2003, que ela entregou a Janis uma fita demo com seis músicas. Três anos depois, antes do lançamento de Back to Black, ela só tocaria duas músicas para Mitch.
Em parte, temos certeza de que isso acontecia porque Amy era perfeccionista, mas também porque ela detestava revisitar o passado. Era como se, depois de colocar os pensamentos e sentimentos no papel, ou de gravá-los em uma música ou em um álbum, ela se sentisse pronta para seguir em frente. Para nós, foi uma surpresa descobrir que Amy não tinha nenhum de seus álbuns em casa. Certa vez, Mitch perguntou a ela:
— Como assim? Você não tem uma cópia de Back to Black aqui?
— Isso já ficou para trás, pai. Estou escrevendo outras coisas agora — respondeu ela.
Era exatamente assim que Amy lidava com a vida.
A música “Take the Box”, do álbum Frank, é um exemplo perfeito disso. Antes de escrevê-la, Amy havia rompido com seu namorado, Chris, e pedido para Janis lhe dar uma carona até o prédio dele. No seu colo, havia uma caixinha cheia de pertences de Chris e de presentes que ele dera a ela durante o namoro. Janis ficou esperando na rua enquanto Amy desapareceu por uns minutos para devolver as coisas.
— Pronto, mãe. Vamos embora — anunciou ela ao voltar para o banco do passageiro.
O nome de Chris nunca mais foi mencionado. Escrever e gravar “Take the Box” — que significa “Fique com a caixa” —, era sua forma de dizer: “Já está resolvido. Já superei”.
Seu maior sucesso, “Rehab”, foi composto após uma conversa que teve com Mitch, provavelmente rascunhada em um caderno. Ela havia ido à casa de Mitch com Nick Godwyn e Nick Shymansky, seus empresários na época. Os dois estavam preocupados com o quanto ela bebia e queriam que procurasse ajuda profissional.
— Não quero ir, pai. Não tenho noventa dias sobrando! — explicou ela para Mitch.
Vários anos depois, essa conversa seria filtrada pela lente criativa de Amy, editada e rearranjada para se transformar em um sucesso que chegou ao topo das paradas. Ela também usava trechos de uma canção em outras para criar novas histórias — um processo constante de fazer cortes, trocar versos, escrever e reescrever. Alguns versos chegavam à versão final, porém, boa parte do que ela escrevia permanecia em seus cadernos, talvez para ser aproveitado no futuro.
Quando se tratava das gravações, poucas pessoas pareciam capazes de desbloquear a criatividade de Amy. Era impossível forçá-la a fazer algo antes que ela estivesse pronta. Ainda assim, havia aqueles que despertavam o melhor dela. O produtor Salaam Remi, de Miami, que produziu Frank e permanece amigo próximo da família, foi muito paciente ao trabalhar com ela. Janis se lembra de ver os dois no sofá do apartamento de Amy, em Camden, sempre que ele chegava dos Estados Unidos. Em um tom tranquilo, Salaam falava sobre estruturas de acordes ou sobre reorganizar partes de músicas enquanto ela, sentada ao seu lado, anotava cada palavra.
O produtor Mark Ronson também parecia oferecer a liberdade criativa de que ela precisava. Por ser judeu e ter sido criado na zona norte de Londres, Amy sentia uma afinidade com Ronson e gostava de sua postura tranquila, que lhe permitia desabrochar. Back to Black foi escrito em três semanas, durante uma viagem para Nova York. Como os fãs devem saber, o álbum documentava um relacionamento malsucedido. Como era típico de Amy, ela reprimiu suas emoções até alguém ou algo lhe entregar uma chave para destrancá-las. Depois que Back to Black foi escrito, tudo estava resolvido. Ela colocou seus sentimentos em uma caixa, fechou-a e seguiu em frente.
É triste para nós saber que nunca ouviremos as músicas que Amy poderia ter produzido nos anos seguintes. É certo que, nos quatro anos entre o lançamento de Back to Black e sua morte, Amy não estava bem o suficiente para compor outro álbum completo nem foi capaz de seguir com a vida da forma como, talvez, fizesse antes. Há uma passagem que Amy escreveu em seu diário na adolescência que nos causa um misto de emoções: “De modo geral, sonho em ser muito famosa, em trabalhar nos palcos. É uma ambição vitalícia. Quero que as pessoas escutem minha voz e simplesmente se esqueçam dos seus problemas por cinco minutos… Quero ser lembrada por ser… apenas eu mesma”. Ainda assim, quando o sucesso chegou, a fama roubou de Amy qualquer privacidade que ela pudesse desejar. Em vez de ser ela mesma, o penteado colmeia, sua marca registrada, virou uma identidade atrás da qual se esconder. Mesmo com paparazzi seguindo-a 24 horas por dia, Amy desdenhava da pressão, apesar de também saber que nunca poderia voltar a ser a mesma de antes. De um modo ou de outro, os momentos que passava sozinha no quarto permaneciam rendendo seus melhores trabalhos, assim como acontecia na sua infância.
Porque você leu Biografia | Música | Trechos
O legado armorial em ‘7 cordéis brasileiros’
Novo lançamento de Luiz Antonio Simas é coletânea de cordéis ilustrados que retratam realidades sociais e tradições brasileiras
DEZEMBRO, 2024