Música, Repertório 451 MHz,

São Paulo é uma festa

A jornalista e curadora Erika Palomino e o DJ e jornalista musical Camilo Rocha falam sobre a cena clubber e seus impactos na arte, música e comportamento

24jan2025 • Atualizado em: 02fev2025

Está no ar o 451 MHz, o podcast da revista dos livros. Neste 127º episódio, a jornalista e curadora Erika Palomino e o DJ e jornalista musical Camilo Rocha conversam com Amauri Arrais, editor da Quatro Cinco Um, sobre os espaços de resistência e criação surgidos nas pistas de dança e no jornalismo cultural do final do século 20 em São Paulo, cidade que completa 471 anos em 25 de janeiro de 2025. A cena clubber está no foco dos livros de Palomino e de Rocha, registros importantes da história da cultura nos anos 1990 e 2000..  O episódio foi realizado com apoio da Lei de Incentivo à Cultura.

Erika Palomino é jornalista, curadora e autora de Babado Forte: 35 anos de cultura jovem no Brasil, um marco na documentação da cena clubber paulistana e de sua influência cultural e política, originalmente lançado em 1999 pela Mandarim. Agora, a obra ganha uma edição ampliada e atualizada pela Ubu, que revisita o impacto transformador da música, moda e diversidade dos anos 90 e 2000. Com novas imagens e textos, a edição celebra a pulsação cultural e política que definiu uma era.

Camilo Rocha é DJ, jornalista e autor de Bate-Estaca: como DJs, drag queens e clubbers salvaram a noite de São Paulo (Veneta), resultado de uma extensa pesquisa sobre as transformações nas pistas de dança e como elas moldaram a música eletrônica no Brasil a partir da capital paulista. Camilo também discute o papel da música e da cultura clubber como espaços de experimentação, trazendo uma narrativa detalhada sobre as revoluções sonoras e seus principais personagens.

Juntos no 451 MHz, Erika e Camilo compartilham suas vivências na cena clubber e conversam com o editor da Quatro Cinco Um Amauri Arrais sobre como ela redefiniu linguagens artísticas e políticas, deixando ecos profundos que ainda reverberam hoje.

A batida conecta

Existe um espaço que pulsa num ritmo próprio, onde luzes, batidas e corpos se encontram em uma entrega absoluta. Almas brilhantes e desviantes, libertas dos padrões, deslizam sem concessões em um território onde a loucura não é ignorância, mas dá ao que é compartilhado um significado íntimo.

Erika e Camilo ressaltam que a pista de dança não é apenas um lugar de diversão, mas de subversão, conexão e identificação. Ela destaca a diversidade e o acolhimento presentes na cena clubber, enquanto Camilo explora como a música eletrônica e a cultura clubber resultaram em grandes transformações, conectando o local ao global.

Capa do livro Babado Forte: moda, música e noite, edição 1999, publicado pela Mandarim

“Esses espaços não apenas refletem a realidade, mas a atravessam”, diz Erika. “Eles se tornam campos férteis para a experimentação, onde novas linguagens culturais são criadas”, Camilo acrescenta.

Resistência na noite

Para a dupla de jornalistas, as pistas de dança se tornaram espaços de resistência e subversão cultural. A apropriação de referências estrangeiras possibilitou a criação de uma linguagem própria, marcada por gírias locais, danças e uma relação visceral com o corpo e o ritmo. 

Na conversa, eles ainda abordam o impacto da pandemia da covid-19 na cena noturna e como os coletivos e artistas se reinventaram nesse período, buscando novas formas de conexão e expressão.

“A pandemia foi um divisor de águas. Foi um momento em que artistas e coletivos tiveram que se reinventar. Muitos fortaleceram suas conexões no virtual, mas isso não substitui a energia da pista”, comenta Erika.

“A pandemia mostrou que a pista não é apenas um espaço físico; é uma comunidade. Esse laço foi o que manteve a cultura viva”, reforça Camilo.

O festival que comemorou os dez anos da festa Mamba Negra, em maio de 2023 (Pedro Pinho/Divulgação)

Além disso, ambos observam que as pistas se tornaram espaços políticos, especialmente para a comunidade LGBTQIA+ e outros grupos marginalizados. Erika menciona coletivos como o Mamba Negra, que fazem da festa de mesmo nome um ato de resistência.

“Outro aspecto que, desde o começo, traz uma identidade própria é a linguagem — nas gírias, no vocabulário”, diz Erika. “Você tem essa fusão do que é conhecido como a linguagem clubber, que é uma mistura de termos em inglês com pajubá, a linguagem das travestis, com expressões locais, expressões da cultura pop, das novelas ou de outras referências da cultura popular. Isso está presente desde o começo na cena clubber aqui”, explica.

A cena clubber

Os autores recordam como a música eletrônica trazida por DJs como Renato Lopes e Mauro Borges moldou a cultura clubber em São Paulo. Camilo lembra o impacto do Nation, o primeiro clube que realmente trouxe o house e o techno para a cidade.

“O Nation marcou uma mudança na noite de São Paulo. Ele trouxe uma nova postura, um novo comportamento. Não era apenas um espaço de dança; era um espaço de expressão pessoal e de celebração da diversidade”, diz.

Erika acrescenta: “Naquele momento, estávamos descobrindo a cultura clubber como algo mais do que uma cena musical, mas como um espaço de criação coletiva e de resistência cultural. Foi quando tudo começou a se conectar”.

Polifonia e memória

Tanto Babado Forte quanto Bate-Estaca compartilham a preocupação de registrar uma história que poderia se perder. Erika aponta que a nova edição de seu livro, que expande sua cobertura além do eixo Rio-São Paulo, traz vozes diversas e visita aspectos que ficaram de fora na edição original.

“No primeiro Babado Forte, eu era muito presente como personagem. Na nova edição, quis sair de cena e deixar que outras vozes contassem suas histórias. Foi uma decisão editorial importante para trazer mais riqueza e multiplicidade,” afirma.

Camilo, por sua vez, observa que seu trabalho em Bate-Estaca foi motivado pela necessidade de documentar uma cena que muitas vezes é ignorada. “O Brasil não documenta bem sua história, especialmente sua história cultural. Meu objetivo foi conectar essa narrativa às novas gerações, sem nostalgia, mas com uma visão crítica e atual.”

“Eu acho que a noite, a casa noturna, tradicionalmente tem esse papel, especialmente em eras menos tolerantes, com a homofobia [virando algo] mainstream”, analisa. “Então, era um espaço de segurança, de pertencimento, de expressão, de você poder ser o que você gostaria de ser e ficar à vontade para fazer isso.”

A performer Ivana Wonder na festa Estúrdia, Casa da Luz, 2016 (Vivi Bacco/Divulgação)

“Esse lugar de pertencimento, acolhimento e proteção, também no sentido de encontro de pares, fortalecimento e criação de uma comunidade, foi essencial. Hoje, a ideia de comunidade é uma expressão mais comum e popularizada, mas lá atrás, ela sempre foi muito forte na cultura da noite”, diz Erika. 

“Quando revisitei a edição de 1999 do Babado Forte, percebi que a palavra ‘transgênero’ não existia [no livro], não foi documentada ou registrada. Não porque não existisse, mas porque não ocupava um lugar na sociedade ou na mídia, não tinha esse espaço“, prossegue. “Enxergar essa transformação na sociedade, ainda que sob um recorte, foi algo que me interessou profundamente em documentar e registrar.”

O melhor da literatura LGBTQIA+

O episódio traz uma dica do poeta Leo Nunes, autor de Está na hora de me tornar um homem sério (Minimalismos, 2023), finalista do Prêmio Jabuti em 2024. Ele indica a coletânea de poemas Santíssimo, de Rafael Amorim, publicada pela Urutau em 2023.

Santíssimo, de Rafael Amorim

“É um livro de poesia em que o Rafael trabalha com uma construção de memórias desde uma infância, em constante tensão com a sexualidade, até a vida adulta e o corpo não normativo que caminha pelo espaço geográfico da cidade“, diz Nunes “O Rafael, a meu ver, faz parte de um grupo de autores atuais que está interessado em produzir e escrever a partir de sua realidade e existência. Mas o que mais me interessa no livro é como esse recorte não se limita apenas a um questionamento sobre a sexualidade, mas transborda ao colocar também em xeque uma questão de classe”, conta.

Confira a lista completa de indicações do podcast 451 MHz no bloco O Melhor da Literatura LGBTQIA+. 

CRÉDITOS

O 451 MHz é uma produção da Associação Quatro Cinco Um.

Apresentação: Paulo Werneck
Produção: Brenda Melo e Mauricio Abbade
Edição e mixagem: André Soares
Produção musical: Guilherme Granado e Mario Cappi
Identidade visual: Quatro Cinco Um
Para falar com a equipe: [email protected]