Literatura infantojuvenil,

A fábula juvenil de Ray Bradbury

‘Ahmed e as máquinas esquecidas’ é uma porta de entrada para o mundo do criador de ‘Fahrenheit 451’

01jan2022 | Edição #53

Ahmed e as máquinas esquecidas é um livro para ser revisitado, para ser relido em variadas cronologias, em outros futuros. Um livro que questiona o tempo, mas, ao mesmo tempo, se indica a leitores jovens, que supostamente mal experimentaram o tempo.

Ray Bradbury não é um autor novo no Brasil. Além disso, desde 2008 a Biblioteca Azul vem lançando belas reedições. O destaque vai para 2020, ano em que publicou Prazer em queimar: histórias de Fahrenheit 451 (tradução de Antônio Xerxenesky e Bruno Mattos), O homem ilustrado (tradução de Eric Novello) e Fahrenheit 451 em edição especial (tradução de Cid Knipel).

Neste novo lançamento, vemos um novo leitor ser chamado: o juvenil. Indicado para todas as idades, Ahmed e as máquinas esquecidas é uma fábula. Mais do que uma fábula, talvez uma porta de entrada para Ray Bradbury.

A grande escuridão é o Inimigo, e o Inimigo é metade do que tudo há; a outra metade é o Salvador

O menino de doze anos Ahmed cai na areia e se perde da caravana em que estava. Conhece Gonn-Ben-Alá, guardião dos fantasmas dos nomes perdidos. Gonn ajuda Ahmed, mostra que não deve mais temer a morte. Ao final, Ahmed descobre que ter se separado da caravana não foi um acidente, mas sim algo necessário para conhecer um lugar chamado “Amanhontem”, que fica no passado e no futuro.

Os eventos parecem claros o suficiente, mas dificilmente ocorrem sem um teor imaterial. É uma fábula, mas não tem uma moral explícita. Ahmed se perde por se distrair, por se perguntar se algum dia eles — ele mesmo, seu pai, os companheiros de viagem — conseguiriam voar.

O tempo como Inimigo

Um menino de doze anos talvez não fizesse as perguntas que Ahmed faz, talvez não sentisse o que ele sente. Ahmed e Gonn-Ben-Alá falam dos sonhos, da memória, de voar, da grande escuridão. A grande escuridão é o Inimigo, e o Inimigo é metade do que tudo há; a outra metade é o Salvador. O Inimigo também é o Tempo e o Tempo Outra Vez.

Se uma parte disso pareceu pouco compreensível, tudo bem: Bradbury não tem a menor intenção de que seja cristalino. Gonn-Ben-Alá conta: “Aquele, na beirada do mundo, é o Tempo que Será. A lembrança do porvir de coisas que serão apagadas, destruídas, se você não agarrá‑las, semeá-las, moldá-las com sua alma, ressoá-las com sua voz. Então o Tempo se torna companheiro da luz e deixa de existir como inimigo dos sonhos”. Ahmed, uma criança, nem pisca: “Tenho medo!”.

A história é um pouco rara, no sentido de incomum, porém com valor em sua unicidade. A linguagem é um dos pontos fortes, na tradução excelente de Samir Machado de Machado. É evidente que demandou precisão em relação aos trechos com referência ao real versus quando o autor convidava ao mundo do sonho. Pela brevidade do texto, muitas ideias são lançadas e, como um menino perdido no deserto, ficam para trás. A linguagem baila com o poético, mas consegue ser objetiva e casual. Às vezes, é figurativa e/ou metafórica. Metafórica de quê? Como nos trechos citados, nem sempre está explícito.

Algo que ajuda na imersão são as ilustrações de Jefferson Costa. O uso de cores nos lembra o universo místico em que estamos. As imagens ecoam a linguagem, criando uma totalidade na mente do leitor. Chamam a atenção para o fato de que a pergunta “O que aconteceu exatamente nesta cena?” não é a pergunta mais relevante ao texto literário — menos ainda à fabula.

Um adulto leitor, uma criança inventiva, gostará muito deste livro. É uma história encantadora, apesar de exigir a renúncia do controle. Por eu ter começado com ficção científica com As crônicas marcianas e O homem ilustrado, consigo me imaginar com este livro na mão aos doze anos, justo por fazer o meu perfil. É um livro sobre sonhos, sobre o impossível e a imaginação, com um enredo e mensagem simples, no meio de diversos enredos e mensagens.

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social.

Matéria publicada na edição impressa #53 em outubro de 2021.