Literatura infantojuvenil,
Meninas que fazem história
Novo livro da dupla Amma e Angélica Kalil fala da infância de Pagu, Carolina Maria de Jesus, Marta e outras brasileiras que transformaram seus sonhos em trajetórias célebres
11abr2024 • Atualizado em: 01ago2024Houve um extenso período em que meninas e mulheres eram proibidas de fazer coisas que hoje em dia a maioria das pessoas considera banais e cotidianas. Como jogar futebol — um veto assinado pelo presidente Getúlio Vargas proibiu por 40 anos que as brasileiras praticassem o esporte. Se isso não tivesse virado poeira, talvez a menina alagoana de Dois Riachos, que participava de campeonatos regionais com outros meninos, nunca teria se tornado a Marta, seis vezes eleita a melhor futebolista do mundo.
São histórias de infância como essa que a HQ Meninas resgata. Publicada pela editora OH!, selo infantojuvenil da Veneta, no mês que comemora o Dia Internacional da Mulher, as autoras Amma e Angélica Kalil, vencedoras do Jabuti 2021 na categoria juvenil por Amigas que se encontraram na História: volume 1 (Companhia das Letras), a coletânea em quadrinhos conta episódios da infância de meninas brasileiras que transformaram seus sonhos em carreiras e trajetórias célebres.
Nesta entrevista para a Quatro Cinco Um, as autoras conversam sobre a importância de contar episódios das infâncias de mulheres que mudaram a história do país, o apagamento a que foram submetidas e os recentes resgates historiográficos sobre suas trajetórias.
Como foi mapear as infâncias de mulheres como a Mãe Menininha do Gantois, Pagu, Carolina Maria de Jesus e Marta?
A e AK: Para este livro, pesquisamos em biografias, reportagens, documentários, entrevistas e até tese de doutorado. A gente vai pegando informações em várias fontes e montando um quebra-cabeça. As mulheres não foram incluídas nos registros oficiais, pois a história oficial é escrita pelos homens.
E temos outros recortes de apagamento brutais, como raça, etnia e região. As mulheres indígenas, por exemplo, são impressionantemente apagadas. Falando de infância, que é o tema de Meninas, nós vivemos em um país que despreza e, de tempos em tempos, parece querer criminalizar a infância. Então, o período da infância é também menosprezado na história oficial.
Por que recontar as infâncias dessas grandes mulheres?
A e AK: Porque a infância, infelizmente, é um lugar de muito sexismo. A criança nasce e grande parte do destino dela já está traçado: se é menino, será direcionado a ser corajoso, forte. Se é menina, a ser cordial, sensível, maternal. Se é menine, não terá lugar nenhum. É uma violência. Quando a gente coloca em prática uma educação feminista, que recusa as imposições de gênero, a gente está dizendo para a criança: você é quem você é e nós, adultos, estamos do seu lado. Na HQ Meninas, é possível perceber que essas personagens que entraram para a história já eram elas mesmas desde que nasceram, mesmo indo contra o que a sociedade previa para elas.
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Durante a pesquisa, nos tocou muito perceber o quanto a aceitação das pessoas adultas pode contribuir para que as meninas ultrapassem as barreiras do mundo sexista em que nascem. Ou, ao contrário, ser mais um obstáculo, às vezes até intransponível. Para citar dois exemplos do livro: Chiquinha Gonzaga, que foi incompreendida pela família e criada para casar, e Maria Lenk, que contou com o apoio total dos pais para ser nadadora em uma época em que se dizia que o corpo feminino não era feito para atividades físicas, e em que as mulheres não podiam usar nem maiô.
No final, vocês comentam que não conseguiram incluir Antonieta de Barros por causa de dados escassos. Quem foi ela?
A e AK: Antonieta de Barros foi a primeira mulher negra a ser eleita no Brasil. A trajetória dela é incrível. Nasceu em Florianópolis, em Santa Catarina, em 1901, filha de uma mulher escravizada que havia sido libertada. Foi muito apegada à mãe e à irmã, com quem se formou professora e abriu uma escola. Também escreveu para jornais, sempre defendendo o direito à educação. Como deputada estadual, foi Antonieta que criou o dia do professor, comemorado até hoje no dia 15 de outubro. A ausência de mais informações sobre a infância dela se deve a todas as camadas de apagamento dos registros históricos a que a população negra do sul do país é submetida. Meninas é dedicado a ela.
Uma outra menina que gostaríamos muito de ter incluído é a Anita Garibaldi, conterrânea de Antonieta e que servia de inspiração para ela. Apesar de ser uma importante heroína brasileira, não encontramos informações da infância dessa revolucionária que nasceu em 1821, na cidade de Laguna, em Santa Catarina.
Vocês pensam em uma continuação para essas histórias?
A e AK: Por que não um Meninas 2? Projetos e ideias não nos faltam, o que precisamos é de recursos para trabalhar. Por isso, é importante dizer que assim como o Meninas, nossos outros livros Bertha Lutz e a Carta da ONU e Amigas que se encontraram na História: volume 2 foram contemplados em editais do Proac (Programa de Ação Cultural do estado de São Paulo) e é por causa dos recursos desse fomento que conseguimos produzir obras assim.
Como vocês enxergam o trabalho de resgate da história de mulheres brasileiras ilustres que vem sendo feito nos últimos anos?
A e AK: Esse resgate da história faz parte do despertar coletivo que estamos vivendo desde o começo dos anos 2010, no que se considera a entrada na quarta onda feminista, marcada pela disseminação das informações pelas redes sociais. Todos os dias vemos mulheres diversas tomando iniciativas e criando mobilizações em volta de diferentes pautas e causas. Ainda assim, estamos muito longe de ocupar espaços de decisão de forma igualitária. O caminho é adverso, mas nossos passos vêm de longe e as mulheres não vão parar.
Como foi pensar no projeto gráfico e trabalhar nas ilustrações e quadrinhos?
A e AK: Queríamos um livro que coubesse confortavelmente nas mãos das crianças e com uma cor de capa que não estivesse associada apenas ao feminino, já que esse livro é para meninas, meninos e menines. Decidimos não colocar o nome da personagem no começo dos capítulos para nos aproximarmos mais da infância de quem está lendo. Aquela é apenas uma criança, como tantas que existem no Brasil. Outro aspecto fundamental para nós é ter diversidade nas cores, regiões, expressões e traços. Para a ilustração, muitas vezes pensamos em técnicas mais elaboradas, mas depois entendemos que o mais importante era o olhar para essas infâncias, marcando gestos, brincadeiras, sentimentos e lugares.
Quais livros vocês gostariam de ter lido na infância?
A: São tantos! [risos]. Mas gostaria de ter lido os nossos livros.
AK: Eu também! Teria sido muito importante para a minha autoestima conhecer os feitos das mulheres quando eu ainda era criança e adolescente. Entender que não somos coadjuvantes da história, que somos protagonistas — isso faz a gente se ver com outros olhos.
Como podemos incentivar o hábito de leitura nas crianças?
A: Tenho uma filha de 11 anos e por aqui eu espalho os livros pela casa, leio com ela antes de dormir e, principalmente, deixo que ela escolha as leituras que têm interesse. Ter uma família leitora também colabora com esse incentivo. Mas cada criança funciona de um jeito. De qualquer modo, entendo que a obrigação cria uma barreira no interesse pelo livro e pela leitura.
AK: Tenho uma filha de 16 anos e penso muito parecido. E acredito na importância da escola para a formação dos leitores, que pode estimular o prazer pela leitura, como disse a Amma. Outro ponto que acho importantíssimo é limitar o tempo de telas para as crianças e adolescentes. Hoje isso é um caso de saúde pública.
Meninas em quadrinhos
Quando a Angélica me trouxe a proposta de fazer o Meninas, ela já tinha algumas imagens elaboradas na cabeça, então me mandava desenhos que fazia no caderno e me explicava o que pensou. Para não limitar as ideias, combinamos que eu faria uns desenhos a partir do texto e veria os seus rabiscos para que pudesse comparar e organizar as ideias. Deu super certo!
A primeira personagem que exploramos juntas foi a Chiquinha Gonzaga. A partir dela, pude experimentar expressões, técnicas e composição. Inicialmente pensei numa estrutura mais vertical do livro, depois percebi que a HQ me pedia uma composição mais horizontal com uma estrutura que acabou variando de capítulo para capítulo. No início, utilizei colagem junto à técnica digital. Pensei que poderia seguir em todas as páginas, mas senti que não era toda página que pedia. Na da Chiquinha, por exemplo, usei uma partitura da própria artista para compor o fundo em um quadro.
Para fazer a cena em que a Maria Lenk nadava, a Angélica pensou no rio Tietê passando de uma página para outra. Fez todo o sentido! Aproveitei e a coloquei aprendendo a nadar e, na sequência, ela evoluindo como nadadora e chegando ao fim do rio vencendo a competição.
Brincar com os requadros foi outro artifício que pensamos, como quando a personagem da Sônia Guajajara pula de um quadro a outro dentro do rio. Trabalhar com histórias em quadrinhos é algo que acho muito desafiador. Mas em Meninas, depois de pensado todos os detalhes, foi fluindo de um modo bem divertido.
Nascida em Eunápolis (BA), Mariamma Fonseca é jornalista e ilustradora, especializada em livros ilustrados para a infância. É a idealizadora do site Lady’s Comics, sobre mulheres e quadrinhos; e coordena uma gibiteca em sua cidade natal. Meninas é o quarto livro em parceria com Angélica Kalil, com quem venceu o Jabuti 2021, na categoria Melhor Livro Infantojuvenil, pelo livro Amigas que se encontraram na História: volume 1 (Seguinte).
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