Literatura,
Os cem anos do robô
Desde sua criação, pelo escritor tcheco Karel Čapek, até sua popularização por Isaac Asimov, como o ser robótico se tornou um fenômeno global
11nov2021 | Edição #52Na vila Petrovichi, próxima à fronteira da Rússia com Belarus (então Bielorrússia), há cerca de cem anos nasceu uma criança na família judaica dos Azimov que recebeu o nome de Isaac. A data exata é desconhecida, contudo foi no intervalo entre outubro de 1919 e início de 1920. Todavia, os pais que deixaram a recém-nascida Rússia soviética e chegaram no dia 3 de fevereiro de 1923 a Nova York a bordo do navio britânico RMS Baltic escolheram como a data de nascimento do mais velho dos seus três filhos o dia 2 de janeiro de 1920 e optaram por alterar a letra “z” por “s” em seu nome. Mais tarde, Isaac Asimov se tornou tão famoso que seu nome seria conhecido no mundo inteiro.
Na época de nascimento do menino, a estrela emergente da cena literária da recém-proclamada Tchecoslováquia, o escritor Karel Čapek, cogitava uma nova peça para o repertório do Teatro Nacional de Praga. Seus protagonistas deveriam ser “trabalhadores artificiais” ou “máquinas laborais dotadas de inteligência e de vida”. Quebrando a cabeça com o nome dos personagens, chegou à ideia de chamá-los de Labors (o termo é inspirado na palavra inglesa labors, originada da etimologia latina de labore, que, por sua vez, significa trabalho, labuta, dureza, fadiga e até dor). Todavia, ele não ficou inteiramente satisfeito com a palavra escolhida e compartilhou suas dúvidas com seu irmão mais velho, Josef Čapek, um pintor respeitado, que havia escrito algumas obras junto com Karel. “Chame-os de robôs”, resmungou o pintor segurando um pincel com a boca, enquanto pintava. “E foi assim que aconteceu”, descreveu mais tarde o próprio Karel Čapek (a palavra com a raiz eslava robota tem o mesmo sentido que o termo labor, destacando, porém, fortemente a servidão).
Karel Čapek começou a escrever R.U.R. — uma abreviação de uma corporação chamada Rossumovi Univerzální Roboti, ou Robôs Universais de Rossum — no início dos anos 20, imaginando que a estreia deveria acontecer no Teatro Nacional de Praga até o final daquele ano. Em função disso, a obra foi publicada em novembro de 1920 pela editora Aventinum, com a capa ilustrada pelo irmão Josef Čapek. Esse plano inicial foi radicalmente alterado pelo grupo de teatro amador originário de uma cidade provinciana, Hradec Králové, e o lançamento mundial de R.U.R. ocorreu apenas em 2 de janeiro de 1921 no palco de um teatro regional com atores amadores e sob a direção de um inspetor da Ferrovia do Estado. No Teatro Nacional, a apresentação ocorreu mais de três semanas depois, em 25 de janeiro. No entanto, a peça permaneceu na programação do local pelos seis anos seguintes, e os ingressos eram vendidos até no mercado ilegal.
Como o próprio Isaac Asimov, o robô de Čapek foi levado a Nova York em idade precoce. Chegou somente quatro meses antes do pequeno Isaac, sendo R.U.R. apresentada em 9 de outubro de 1922 pelo The Theater Guild, no Garrick Theater, na Broadway.
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“R.U.R. tornou-se imediatamente um sucesso. Foi uma reação plausível, uma vez que Čapek explorou habilmente um tema importante de sua época: a potencial influência destrutiva da civilização tecnológica na sociedade — assunto que é, aliás, recorrente em suas obras. Simultaneamente, foi criada uma impressionante metáfora que alerta sobre a modernidade controlada não integralmente por ideias e valores, mas pelo intelecto impiedoso de magnatas predadores.
Metáfora
Há muitas interpretações dessa metáfora que acreditam se tratar de uma ríspida crítica ao capitalismo individualista, enquanto outras afirmam se tratar de um alerta do escritor tcheco contra ameaças de revoltas e revoluções. Para alguns leitores, os personagens principais são os humanos; para outros, são os robôs.
Com a visão retrospectiva de cem anos, novas interpretações da metáfora de Čapek estão surgindo. Visto com os olhos de hoje, Rossum’s Universal Robots Company pode ser interpretada como uma corporação global biotecnológica, e comparável, quanto aos valores ativos líquidos, à potência inovadora e à interferência nos assuntos globais como Google, Apple e Tesla. O papel da heroína humana Helena Glory, essencial na trama, é o paradigma do ativismo contemporâneo em prol dos direitos universais humanos das ONGs. Os robôs, como produtos criados pelos homens, aniquilam seus criadores da mesma forma como muitas das nossas invenções humanas atuais e tantos outros produtos concebidos pelo ser humano estão aptos a destruir até mesmo o planeta inteiro.
Apesar de os elogios prevalecerem, a crítica contemporânea também destaca alguns deméritos da obra. Na Tchecoslováquia, particularmente, a vanguarda de inclinações culturais esquerdistas repreendeu o escritor por ter se apossado de um assunto envolvente que não traz algo de novo, senão um kitsch requintado, cuja intenção era só agradar ao público internacional.
Mesmo que, provavelmente, essa não tenha sido a intenção do escritor, foi o que de fato ocorreu. No início de 1921 a peça estreou em Aachen, na Alemanha, e um ano depois em Varsóvia, Belgrado e, como já mencionado, em Nova York. Em 1923, foi encenada em Londres, Viena, Berlim, Zurique e, nos anos seguintes, em Paris, Tóquio, Budapeste e Cracóvia. Na mesma década a obra foi traduzida para várias línguas europeias e novas versões continuam aparecendo — as mais recentes são em tailandês e filipino. A peça foi elogiada por H. G. Wells, autor de A guerra dos mundos e um dos mais influentes intelectuais públicos de sua época, que mais tarde promoveria a indicação de Čapek para o prêmio Nobel. Em 1938, R.U.R. foi a primeira produção de ficção científica da televisão a ir ao arpela BBC. No Brasil, o texto foi publico como A fábrica de robôs (trad. de Vera Machac, Hedra, 2010 ) e RUR: Robôs Universais de Rossum (trad. de Rogério Pietro, Madrepérola, 2021).
Isaac Asimov
Da mesma maneira enérgica que a peça invadiu os palcos mundiais, o robô tcheco começou a ocupar cada vez mais espaço público, cultural e também científico e alcançou o status de fenômeno global, sendo um símbolo indiscutível da crescente civilização tecnológica. Entretanto, não foram só os robôs do pai legítimo Karel Čapek que contribuíram para essa conquista planetária. A mesma influência, até maior, cabe ao pai adotivo e trinta anos mais jovem Isaac Asimov.
O filho do vendedor de doces do Brooklyn começou a estudar zoologia na Universidade Columbia, mas, ao final, obteve seu diploma em bioquímica e lecionou alguns anos na faculdade de medicina da Universidade Boston. No entanto, começou a escrever ficção científica com crescente sucesso desde cedo, aos dez anos. Seu primeiro conto, “Perdido em Vesta”, saiu quando ele ainda era adolescente na revista Amazing Stories, em 1939. Em junho desse mesmo ano começou a escrever seu primeiro conto sobre robôs, “Robbie”, que saiu na revista Super Science Stories em setembro de 1940, com um título que Asimov nunca gostou: “Strange Playfellow” (O estranho companheiro).
O centro desse gênero, que na década de 40 e 50 extrapolava cada vez mais o grupo de adolescentes com o rosto cheio de espinhas, sempre foi nos Estados Unidos — especialmente em torno de Robert A. Heinlein e Issac Asimov. A “santa trindade” da idade do ouro da ficção científica foi completada pelo autor britânico Arthur C. Clarke
Asimov fez história nesse gênero por introduzir dois tópicos temáticos em seus livros: a extensa saga galáctica Fundação e a série de livros sobre robôs, que incluem dezenas de contos, como as coletâneas Eu, robô, de 1950, e as novelas As cavernas de aço (de 1953; no Brasil foi publicado pela primeira vez com o título Caça aos robôs), O sol desvelado (de 1956; publicado no Brasil também com o título Os robôs), Os robôs do amanhecer (1983; também sob o título Os robôs da alvorada) e Os robôs e o império (1985).
A Rossum’s Universal Robots Company é comparável a empresas como Google, Apple e Tesla
Asimov foi importante por desenvolver e popularizar a ideia do robô. De fato, ele enriqueceu o tema tradicional sobre seres artificiais ou máquinas animadas (homunculis, androides, automatons), como o robô de Čapek, e acrescentou a ciência da robótica, que deriva do mesmo termo. Com uma inventividade mais científica que legisladora, também definiu as Três Leis da Robótica, que regem incondicionalmente o mundo que ele criou, onde homens e robôs coexistem:
1ª Lei: um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal;
2ª Lei: um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens contrariem a Primeira Lei;
3ª Lei: um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira e a Segunda Lei.
Ao formular essas leis, Asimov deu um passo crucial: o robô, a criatura artificial, deixou de ser uma ameaça para o homem e se tornou seu parceiro, protetor e servo. Usando a terminologia política e inspirando-me no termo “socialismo com o rosto humano” da Tchecoslováquia, é possível pensar que Asimov criou o robô com “o rosto humano”, ainda que essa sua tentativa tenha sido também inútil e temporária o que demonstra, por exemplo, a série de filmes O Exterminador do Futuro.
Portanto, as leis de Asimov ainda são citadas, mas também modificadas e ampliadas por novos autores que mantêm uma ligação não só com o universo ficcional, mas também com o mundo real em que os robôs já existem. Hoje, os robôs fazem parte de linhas de montagem em fábricas, armamentos de exércitos, salas de cirurgias e unidades de cozinha. Contudo, por enquanto, eles se mantêm apenas como máquinas. Os robôs que se assemelhariam aos nossos parceiros, como no caso dos personagens Primus e Helena de Čapek ou Robbie e Daneel Olivaw de Asimov, continuam sendo uma ficção.
Isaac Asimov constantemente mencionava a origem tcheca do robô e a peça de Čapek, o que não ocorria apenas nas narrativas sobre seus robôs, mas também em seus inúmeros livros que popularizam a ciência. A própria peça R.U.R. não afetou a sua obra — na verdade, ele nem se interessou por ela. Esse fato foi comprovado pelo próprio autor deste texto diretamente da boca de Asimov. No final de 1988, fui visitar o escritor em sua cobertura da qual se avistava o Central Park, em Manhattan, e, é óbvio, não resisti em fazer a pergunta. Asimov afirmou que estava familiarizado com a obra de Čapek, contudo não foi influenciado por ela de nenhuma maneira significativa. Segundo ele, a ideia da peça era boa, porém o tema mais importante da obra não era o robô.
Quem sabe como Čapek reagiria a esse comentário. Talvez ele nem se preocupasse com isso. Os dois escritores não estavam apenas afastados por uma diferença geracional, mas também foram criados em contextos culturais muito diversos.
William E. Harkins, professor de línguas e literaturas eslavas da Universidade Columbia, elucida que dentro de toda a sua obra dramática, o autor tcheco não tinha muito apreço por essa peça que introduziu os robôs na cultura popular. Segundo o professor, a relação distante de Čapek com R.U.R. fica evidente em uma entrevista concedida a um jornal: “Essa obra poderia ter sido escrita por qualquer um”.
Talvez R.U.R. pudesse ter sido escrita por qualquer um, mas foi Čapek quem a escreveu. Foi por sua causa que há cem anos o robô nasceu em Praga para se tornar o tcheco mais famoso da história. De Nova York, Isaac Asimov redefiniu e promoveu o conceito que se transfigurou em um mito moderno e um dos mais significativos no mundo. E, por fim, devido ao progresso tecnológico, o mito do robô tem se transformado cada vez mais em uma realidade. (Tradução de Filip Vavrínek)
O texto foi cedido pelo Consulado Geral da República Tcheca em São Paulo na ocasião de cem anos da peça R.U.R.
Matéria publicada na edição impressa #52 em outubro de 2021.