Literatura brasileira,

Fantasmas da ditadura

Novo romance de Bernardo Kucinski traz desaparecidos políticos mais uma vez para o centro do debate

31mar2023 | Edição #68

A literatura dá voz aos vencidos. Encontra desaparecidos. Faz-lhes justiças imaginárias. A literatura propicia redenções que as oportunidades não fizeram acontecer. O papel do escritor é resgatar, resgatar e resgatar. Desenterrar, realizar autópsias com dados coletados em pesquisa minuciosa, seja através de depoimentos e arquivos secretos, seja pelo senso comum ou, por vezes, fazendo ligações com as informações jogadas em fragmentos, como um quebra-cabeça. O escritor é o forense que tenta identificar para encaixar.

O turbulento período do regime militar deveria suscitar, entre outras coisas, uma lúcida e detalhada autocrítica. De ambos os lados. Mas a do lado de lá nunca vem. O drama em prosa de Bernardo Kucinski ressuscita aqueles e aquelas que não tiveram a oportunidade de desabafar nos minutos finais, fazer um balanço completo, ou até um mea-culpa. Morreram solitários, desenganados, trucidados por animais raivosos.

Escrito durante a pandemia de Covid-19, entre dezembro de 2019 e dezembro de 2022, O congresso dos desaparecidos relembra um forte poema do militante Alex Polari, que foi condenado à prisão perpétua em 1970 por estar entre os sequestradores do embaixador alemão pela vpr e que, anistiado quase dez anos depois, embrenhou-se na Amazônia, onde se tornou um padrinho do Daime e o inventariante de uma geração perdida: “Estamos todos perplexos, à espera de um congresso dos mutilados de corpo e alma” (em Inventário de cicatrizes).

Nem viu para onde o levaram; perdeu a conta de quantas vezes o enterraram e desenterraram

O ponto de partida do romance é o reencontro de dois companheiros de uma organização clandestina esmagada pelas forças da repressão. Estão num banco da Praça da República — que já foi um cartão postal da cidade, mas hoje está aterrada na decadência — diante do Caetano de Campos — antiga e vibrante escola pública, hoje uma repartição pública.

Rodriguez quase não reconhece Japa, que tem o rosto desfigurado. Ele explica que apanhou demais na tortura, foi deformado. Lembram que ali mesmo eles “caíram”, ou seja, foram presos, e tombaram há quarenta anos.

Aqueles foram os meus melhores anos e também os piores. Éramos jovens e éramos rebeldes. Todos aspirávamos dar à vida um sentido relevante, quiçá heroico. Assumimos a revolução como destino. Derrotar um exército, mudar o mundo, tudo parecia possível. Que ingenuidade! Que ilusão! Que tremenda ilusão! Depois, o pânico, quando já sabíamos da derrota e, não obstante, perseverávamos, como que provocando o anjo da morte. E me perguntei pela enésima vez: como foi possível acreditar? E de que adiantou nossa imolação para chegar aonde chegamos, povo na penúria e no obscurantismo e a própria natureza sobressaltada por cataclismos e epidemias que parecem prenunciar o fim dos tempos.

São dois fantasmas, duas almas. Rodriguez sentiu o mesmo impulso de rever a praça. E no mesmo momento. Ele se confessa atolado em tédio e solidão. Sem a militância, a vida parece sem sentido. Podiam ter permitido aos seus pais um enterro decente, porém decidiram desaparecer com ele. Nem viu para onde o levaram. Perdeu a conta de quantas vezes o enterraram e desenterraram. Por fim, o despejaram na vala de desaparecidos do Cemitério de Perus, misturado com outros, e ficou impossível identificá-lo.

Assombrar os vivos

Japa então tem a ideia de reunir os fantasmas e lançar um manifesto. Rodriguez cala-se por um tempo e, de repente, exclama: “Um encontro dos desaparecidos! Que ideia poderosa! Um encontro nacional dos desaparecidos políticos! Os espectros dos mortos assombrando os vivos!”.

A narrativa entra no óvulo da magia. Como avisar aqueles que não têm redes sociais? Vai ser no boca a boca. Precisam marcar hora e local. Será aberto na noite do primeiro de maio, não no Theatro Municipal, muito burguês, mas na Catedral da Sé, onde foram realizadas as missas de Alexandre Vannucchi Leme e Vladimir Herzog, gestos corajosos de líderes religiosos peitando a ditadura.

Vêm à mente rostos de companheiros que anseiam por rever. “Faz tempo que não topo com nenhum dos nossos, e você?” Rodriguez responde que costumava topar com o Jonas rondando a ossada de Perus, mas faz tempo que não o encontra. As ossadas não estão mais lá, foram trasladadas para o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense criado pela universidade, era muito material, mais de mil caixas. Não sabia, diz Rodriguez, e ironiza: “Viramos fósseis de eras passadas”.

Impunidade

Entra em pauta na conversa o esquecimento daqueles que tombaram combatendo o regime por conta da Lei da Anistia e da pressão civil e militar contra investigações sobre crimes de tortura. Até pensam em convidar Amarildo, um desaparecido recente numa operação policial na upp da Rocinha, que seguiu o mesmo roteiro dos desaparecimentos políticos, uma prova de que pouco mudou; e talvez pouco tenha mudado por conta da impunidade.

Na data marcada para o encontro, antigos militantes vão aparecendo, um a um. Dão seu depoimento. Registram sua revolta. Fantasmas ganham vida. Até meu pai, Rubens, aparece e discursa, aliás, bem ao estilo dele: o de um deputado. Na leitura do romance, começamos a reconhecer alguns, apesar de o sobrenome não nos ser dado.

David é David Capistrano, editor e líder comunista desaparecido em 1974. Osvaldão, o primeiro a chegar, é o notório guerrilheiro do pcdob morto em 1974, pendurado num helicóptero e exibido à população do Araguaia. Onofre é o Pinto, liderança daVanguarda Popular Revolucionária (vpr), desaparecido em torno de 1974. Jonas é Virgílio Gomes da Silva, desaparecido em 1969, da Ação Libertadora Nacional (aln). Muitos contam por que entraram para a luta armada.

Custei a entender o que o levou à luta armada, mesmo porque era incapaz de empunhar um revólver. Certa vez em que ficamos reclusos num aparelho dias a fio, pedi que me explicasse o anarquismo. Ele deu-me, então, uma aula sobre as rebeliões operárias nas minas de carvão e nas primeiras tecelagens. Disse que o anarquismo despertou a imaginação dos trabalhadores, tanto que criaram centenas de jornais e revistas e associações operárias pelo mundo afora, ao passo que o leninismo veio depois e o sufocou. Nessa ocasião ele me explicou que aderira à luta armada porque uma das consignas do anarquismo é a de ir além das palavras, agir.

Decidiram até convidar Borges, um suposto traidor.

Hoje somos todos iguais, vivemos a mesma condição, no mesmo limbo, só que dispersos na imensidão do nada, vagabundeando por não lugares; o encontro nos fará companheiros de uma nova jornada, quem sabe uma jornada transcendente, histórica; só quem viveu a majestade de nossos tempos de juventude pode avaliar o tamanho da tragédia de hoje, nada foi tão nefasto na história moderna quanto esse surto fascista que, além da devastação da natureza e da degradação social, está destruindo tantos brasileiros.

O Primeiro Congresso Nacional dos Desaparecidos Políticos conta com uma lista oficial de 240 pessoas. Convidam aqueles cujas mortes foram certificadas, sem que seus despojos, por estarem misturados a outros, tenham sido identificados.

Os mais antigos desaparecidos são Nego Fubá e Pedro Fazendeiro. Desapareceram em 7 de setembro de 1964, num quartel do Exército em João Pessoa. Ainda não havia o projeto de Estado de desaparecer com adversários que se intensificou a partir dos anos 70, para eliminar oponentes e também evitar a troca de presos por diplomatas (foram ao todo quatro diplomatas sequestrados). O que havia era uma prática reiterada de abuso policial que precisava ser ocultada. Nego Fubá e Pedro Fazendeiro eram dirigentes da Liga Camponesa de Sapé. Quatro anos depois, desapareceram com Jonas, dirigente da Ação Libertadora Nacional.

Religiões se dedicam aos mortos; biógrafos os revivem; a literatura dá voz a eles ou a elas

O maior contingente é o de mais de cinquenta jovens surpreendidos pelo Exército quando preparavam uma guerrilha na Amazônia e foram executados sistematicamente, à medida que eram capturados. Apenas 29 corpos foram localizados, e dois, identificados. E para onde vai a maior queixa? Como o pcdob, partido com tantos anos de luta e história, fez uma operação tão desastrosa, quase suicida, a “guerra popular prolongada”, abandonando os últimos sobreviventes na miséria?

Desde o começo, o Exército já tinha um dossiê sobre eles. E os dirigentes sabiam que o Exército sabia, porque, mal os primeiros jovens chegaram ao Araguaia, foi manchete de jornal que militantes treinavam na China para implantar uma guerrilha no Brasil. Reportagem extensa, em duas edições consecutivas da Folha de S. Paulo; dava os nomes e os retratos de muitos deles. Só não dizia onde exatamente a guerrilha seria implantada, mas trazia um mapa do Brasil com destaques de Mato Grosso, Goiás e Pernambuco. O plano foi descoberto pelos norte-americanos ao interceptarem os militantes em trânsito para a China.

Encontraram Pedro Tim. E o que ele diz da luta armada? Diz que tem dúvidas: quanto mais pensa, mais dúvidas tem, mas de uma coisa ele tem certeza. Não foi uma escolha fundada numa racionalidade política, nem mesmo foi uma escolha, ele disse, foi uma imposição dos tempos, quase como um destino. Não havia racionalidade política, nem no começo, muito menos depois do assassinato de Marighella.

Rumo a Brasília

Decidem remarcar um segundo congresso dois anos depois. Ao fim, os espíritos começam a marchar. O cortejo vai engrossando à medida que avança rumo a Brasília. Caminham devagar para dar tempo dos outros espíritos inquietos se juntarem. Logo surgem três meninos desaparecidos em Belford Roxo, de mãos dadas. Um deles tem apenas oito anos. Tem um bloco de nove desaparecidos de Brumadinho.

Na Esplanada dos Ministérios já se encontram os desaparecidos do Norte e do Nordeste. Caboclos assassinados no Pará e no Maranhão por pistoleiros a mando de grileiros e garimpeiros. Alguns milhares de sertanejos chacinados em Canudos, indígenas aculturados, lideranças de ligas camponesas, posseiros, os desaparecidos da Cabanagem e da Guerra do Contestado e três combatentes do Araguaia que não compareceram ao Congresso. Lá está também o pedreiro Amarildo.

Veja como os mortos jamais se calam, nem mesmo aqueles que morreram há tanto tempo, como Sepé, que é como se nunca tivesse existido, aqueles que o poder quis anular não só fisicamente, também no imaginário das pessoas, decapitando-os, desterrando-os, declarando-os malditos. Eles voltam-se contra esse mesmo poder com a força inaudita dos espectros.

Religiões se dedicam aos mortos. No Egito, eles eram embalsamados para retornarem ao mesmo corpo. Shakespeare deu voz ao rei morto, pai de Hamlet, traído e clamando por vingança. Biógrafos revivem mortos. A literatura dá voz a eles e elas. Ou, como diz Japa: “Vejo o presente, mas o passado está fincado dentro de mim”.

Quem escreveu esse texto

Marcelo Rubens Paiva

É autor de Meninos em fúria e O orangotango marxista, ambos pela Alfaguara.

Matéria publicada na edição impressa #68 em março de 2023.