Literatura brasileira,

Falar para não esquecer

Ana Cristina Braga Martes navega na contracorrente em busca de um país que se descolou de sua identidade histórica

01maio2024 • Atualizado em: 13maio2024
A socióloga e escritora paulista Ana Cristina Braga Martes (Carol Carquejeiro/Divulgação)

O romance Sobre o que não falamos, de Ana Cristina Braga Martes, é um acontecimento literário. É arte. Com um pano de fundo político difícil, doloroso, nada cede ao panfletário. A ação, que se passa num bairro proletário de uma pequena cidade do interior paulista durante os anos mais sombrios da ditadura militar, flui sem gritaria palavrosa, sem eloquências vãs ou pirotecnias narrativas, e vem consagrar em definitivo o talento de uma autora singular, que não precisa reivindicar filiações a correntes, modas ou escolas. Quem não ler perderá.

Antes de entrar no livro propriamente dito, falemos da escritora capaz de tecer uma prosa mais leve do que o ar e mais cortante do que uma sirene no meio da noite. Braga Martes sabe narrar com segurança e lirismo. Por debaixo da limpidez do texto, da beleza aparentemente fácil e espontânea, há raízes profundas de inteligência e décadas de apuro do espírito. Estamos falando de uma acadêmica de alto nível, com uma densa vivência intelectual, que só agora — já era tempo — se entregou de vez às letras. 

Ela se graduou em sociologia, foi orientanda de Ruth Cardoso, desenvolveu parte do doutorado no Massachusetts Institute of Technology (MIT) e deu aulas por vários anos na Fundação Getulio Vargas de São Paulo. Escritora finalmente assumida, ela não abandonou o pensamento crítico, por certo, mas soube livrar sua ficção pensante de qualquer resquício de jargão universitário ou maneirismo discursivo das ciências humanas.

Sobre o que não falamos é seu segundo romance publicado. O primeiro, A origem da água, inspirado na biografia da escritora Maura Lopes Cançado, foi lançado em 2019 pela Confraria do Vento e acendeu os olhos de leitoras preciosas. Uma delas foi a grande tradutora e editora Heloisa Jahn, que, na orelha, tratou de avisar todo mundo: “O primeiro romance de Ana Cristina Braga Martes apresenta uma autora que tem muito a dizer”. Jahn elogiou o “tom contido e discreto”. De fato, essa romancista — que também já compôs versos, dos bons, mas não os levou a público — tem a capacidade incomum de descrever os padecimentos pavorosos com palavras que não arranham. Só faltou registrar que a romancista contida e discreta também é matadora.

Silêncio medroso

Seu novo livro vem para comprovar. A protagonista, uma garota negra ingressando na adolescência, é criada pelos avós maternos, brancos, numa vila de trabalhadores. É ela quem narra tudo, em primeira pessoa. O motor do enredo vem do impulso da menina em desvendar a própria origem e entender seu lugar nesta vida. Ela jamais conheceu os pais. Guarda poucos retratos, mas não sabe contar o que se passou com sua família. De repente, quer saber tudo. À medida que avança no caminho de descobrir o que nunca lhe foi dito, vai aprendendo sobre as teias da repressão política, o silêncio medroso e o significado da palavra ditadura.

Um dia, a narradora ganha uma fotografia de presente de uma professora. Na imagem, duas mulheres sorriem uma para outra. Uma é sua professora. A segunda figura na foto é a sua mãe, a desaparecida, que parece contente em seu vestido curto. A mãe tinha o cabelo comprido e liso. A garota comenta o que viu: 

No muro em que estavam encostadas, estava escrita alguma coisa que eu não conseguia entender. Dava para ler ‘abai’ e ‘ditadu’. As palavras estavam interrompidas, escondidas atrás do corpo da minha mãe.

Outro dia, alguém mostra para ela uma antiga página de jornal com uma notícia sanguinolenta e sensacionalista. “Matou a esposa.” A vítima seria sua mãe. O assassino, seu pai. “Bebê tirado vivo da barriga da mãe morta.” A narradora se recorda do sofrimento surdo que a tomou naquele instante — e nos dias que se seguiram. Ela adoeceu. Teve febre. Não pegava no sono.

À medida que descobre o que nunca lhe foi dito, a narradora aprende sobre as teias da repressão política

Acordei durante a noite, algumas vezes totalmente descoberta e com frio, outras, embaixo do cobertor e transpirando de tão quente. Sonhei de novo com uma casa abandonada, cinza, vazia, onde eu entrava com muito cuidado e excitada ao mesmo tempo, sem saber o que tinha ido fazer ou buscar lá dentro. Dormindo ou acordada eu via o recorte do jornal, um papel velho, meus pais juntos, um do lado do outro, como eu sempre quis. A manchete aparecia como um letreiro luminoso, ainda estava sonhando? Era por isso que meu avô fechava a cara sempre que eu perguntava do meu pai, que minha avó desconversava. As fotos, o rosto do meu pai, a morte da minha mãe, bebê sobrevivente! Ele preto, ela branca, eu era o quê?

Muito simples: ela era a “Galinha Preta”, como a apelidaram os gêmeos que eram seus vizinhos. A violência rasga a pele escura ou clara das situações mais pueris. Submersa ou exposta, está sempre a ponto de explodir, como quando a surra do avô cai sobre ela feito tempestade.

Não contei quantas cintadas, mas sei que foram muitas por causa da dor, do tempo entre uma e outra que eu implorava para não vir, pelas contrações nas pernas e também nos braços que ficaram marcados ao tentar me defender. Meu corpo molhado devia estar suando mais do que ele, mas era o suor dele que eu sentia. Cheiro de cavalo. Não mente mais pra mim, nunca mais, meu avô gritou com a boca apertada, tentando abafar o som que nem ele conseguia controlar, até que, de tão cansado, jogou a cinta no chão e saiu. Só então sentia minha saia molhada, o xixi ainda escorrendo. Isso eu não ia esquecer.

(Neste nosso país em que até o presidente da República, um sujeito de esquerda, pede que não se fique remoendo a memória do golpe militar de 1964, a obra de Ana Cristina Braga Martes navega na contracorrente em busca de um país que se descolou de sua identidade histórica. “Sobre o que não falamos” é um título que fala tudo.)

Esquecer, jamais. A “Galinha Preta” desesquece. Aos poucos, desvela os segredos que o arbítrio lhe impôs. Ora vê o mundo como criança, ora o lê como mulher pronta. Com o que vê, com o que lê, com o que conta, vai se percebendo ela mesma uma autora: toma a palavra como quem toma a liberdade para si. Em seu percurso de pura aceleração, fala por si — e fala também por Braga Martes.

Quem escreveu esse texto

Eugênio Bucci

Jornalista e professor, é autor de Incerteza, um ensaio (Autêntica).

Peraí. Esquecemos de perguntar o seu nome.

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