Literatura brasileira,

O Vampiro e o Sabiá

Um relato sobre a amizade de Dalton Trevisan e Rubem Braga e trechos inéditos da correspondência entre os escritores

01maio2024 • 13maio2024
Dalton Trevisan e Rubem Braga em Curitiba, 1968 (Acervo pessoal/Divulgação)

Desde 1959, quando lançou Novelas nada exemplares, Dalton Trevisan se tornou conhecido no meio literário, mas foi no Concurso Nacional de Contos, realizado, em 1968, pela então Fundação Educacional do Estado do Paraná (Fundepar), hoje Instituto Paranaense de Desenvolvimento Educacional, que se consagrou como mestre no gênero. Vencedor da competição, da qual recebeu dez milhões de cruzeiros novos e que deixou o mineiro Luiz Vilela em segundo lugar — conta Rubem Braga em “Curitiba, Rio”, publicada no Diário Nacional de 28 de junho de 1968 —, ele não imaginava que, além do título de melhor contista do país, ganharia um amigo: o próprio Braga, que integrava a comissão julgadora e a quem já conhecia de encontros no Rio de Janeiro, quando vinha tratar de edições e bater papo com Otto Lara Resende. 

“Insone profissional”, como o chamou Fernando Sabino em entrevista publicada no Jornal do Brasil de 6 de maio de 1974, Dalton Trevisan costumava ser redimido de manhã cedinho pelo canto da cambaxirra, em Curitiba chamada de corruíra, dando a noite por terminada e anunciando a chegada do dia. É da falta de sono e baixa sociabilidade que vem o apelido de Vampiro de Curitiba, justificado ainda pela frequência com que ele tratou do tema do vampirismo em sua obra.

Morador de caverna

Na casa da rua Ubaldino do Amaral, 487, onde morou dos trinta até os noventa anos, Dalton criou Troglodytes musculus (morador de caverna), injusto nome científico para as simpáticas corruíras, instaladas nas casinhas de madeira feitas por um tio materno, o tio Primo, que inspiraria o personagem Balduíno de Sonata ao luar (1945), livro de estreia do autor, renegado durante décadas e belamente reeditado, em 2023, pela Arte & Letra, de Curitiba. Mais do que casinhas, tio Primo construía “bangalôs”, como o sobrinho as define na carta a Rubem Braga, tal a perfeição do imóvel, vamos dizer assim, dotado de uma única e minúscula porta, de modo que seu interior ficasse escuro como o pássaro gosta para aí construir seu ninho. 

Mas Rubem Braga se atrasou; tio Primo morreu antes que ele pudesse lhe encomendar um “bangalô”. Ainda assim, não deixou de ter uma dessas casinhas, mesmo que de autoria menos nobre: Dalton Trevisan lhe comprou duas no comércio curitibano e as enviou pela Varig. Delicadeza de passarinheiro.

Dalton Trevisan costumava ser redimido de manhã cedinho pelo canto da cambaxirra

Braga convivia com a passarada na sua lendária cobertura no 14º andar do Edifício Barão de Gravatá, à rua Barão da Torre, 42, em Ipanema. Gostava tanto das cambaxirras que, na Revista Nacional 570, de 29 de outubro de 1989, publicou a crônica “Conversa sobre passarinhos” a respeito da escolha que se fazia de uma ave para simbolizar o país. A eleição de um pássaro nacional mereceu opinião de Helmut Sick, o notável ornitólogo alemão radicado no Brasil e autor de Ornitologia brasileira. Ele votaria na guaruba, que tem as cores da bandeira brasileira, opondo-se ao colega Dalgas Frisch, que preferia o sabiá-laranjeira (Turdus rufiventris). 

“Não quero me comprometer nessa luta”, isentava-se Rubem Braga, que encerra a crônica propondo a Dalton Trevisan, “em cujos contos curitibanos sempre chilreia uma corruíra, a candidatura desse alegre e vivo passarinho que aqui se chama cambaxirra. Ainda hoje cedo ouvi uma cantar. É um bichinho cheio de graça, devorador de insetos, espevitado e elegante, que faz seu ninho em qualquer buraco que encontra e, por isso mesmo, tem o pavoroso nome científico de Troglodytes. Outros nomes seus são carriça, garricha, garrincha. Garrincha, alegria do povo! Vamos votar neste, Dalton, neste pequeno nacional de cor parda”.

Mas quem ganhou a eleição foi mesmo o sabiá-laranjeira: em 2002, por decreto do então presidente Fernando Henrique Cardoso, o pássaro foi eleito ave nacional do Brasil e 5 de outubro mantido como Dia da Ave, originalmente instituído em 1968. 

A relação de Rubem Braga com sabiá vem de muito tempo. De acordo com o biógrafo Marco Antonio de Carvalho, em Rubem Braga: um cigano fazendeiro do ar, já nos primeiros anos da década de 30, quando o cronista trabalhou no Estado de Minas, de Belo Horizonte, o então diretor, Afonso Arinos de Melo Franco, comparava-o a um passarinho pelo modo suave de escrever no austero periódico belo-horizontino e pela mania de andar assobiando e atirando pedrinhas nas vidraças das casas. 

A comparação certamente o agradou. Não terá sido sem motivo que ele foi tocado pela notícia de um passarinho que levara uma condecoração da lapela do industrial e banqueiro-conde Matarazzo. O fato resultou na antológica crônica “O conde e o passarinho”, em O Jornal (RJ) de 8 de fevereiro de 1935, em que se lê: “O passarinho não é industrial, não é conde, não tem fábricas. Tem um ninho, sabe cantar, sabe voar, é apenas um passarinho e isso é gentil, ser um passarinho”.

Mas Braga passaria a ser conhecido como o Sabiá da Crônica pelo menos desde 30 de dezembro de 1953, quando, na coluna “O Rio se diverte”, do Diário Carioca, Stanislaw Ponte Preta lhe fez uma caricatura: “A esplêndida caricatura do Sabiá da Crônica que ilustra este tópico é de autoria do próprio Stanislaw” — escreve, referindo-se a si mesmo em terceira pessoa e cunhando a expressão. Dez anos depois, em entrevista a Yllen Kerr, publicada no Jornal do Brasil de 24 de julho de 1963 com o título “Ganha-se bem, mas não é divertido”, Braga confirma a origem do nome:

— Quem inventou o Sabiá da Crônica?

— Foi o Sérgio Porto; bondade de amigo. Na verdade, sou um modesto vira. 

Entre as datas das duas matérias citadas, Paulo Mendes Campos publicou “Meu amigo Rubem Braga” na revista Manchete de 16 de agosto de 1958. Salvo pequenas alterações, é o mesmo texto que ganharia o título de “Assim canta o sabiá” e serviria de prefácio ao livro de Braga As boas coisas da vida (1988). Nesse mesmo ano, Mendes Campos a republicou no Jornal do Brasil de 11 de setembro de 1988, nomeando-a “Emplacado o Sabiá”. Foi, no entanto, com o título adotado no prefácio que seria incluída em antologias subsequentes. 

De um modo ou de outro, o tratamento pegou. Em “Assim cantava o Sabiá”, incluído em seu Gente, Fernando Sabino narrou a história da Editora Sabiá, que criou com Braga e foi uma espécie de prolongamento da Editora do Autor. Se a crônica de Sabino se constitui editorial, vamos dizer assim, o perfil “O príncipe e o sabiá”, de Otto Lara Resende, contém análise fina do estilo e da personalidade de Braga:

Porque sempre escreveu na imprensa, de Rubem Braga se diz que é um cronista — o príncipe da crônica. Mas que é a crônica? Aqui a porca torce o rabo em discussões bizantinas. [] Mas vá ler Rubem Braga e veja quantos livros ele escreveu com esse ar songamonga de quem está se lixando para as galas acadêmicas. Exemplares, densos, completos. Livros que falam de alegrias e tristezas. [] Caráter viril, o seu tanto urso, amigo da solidão e do convívio, com um temperamento que traz escondido um supetão meio brusco, Rubem Braga escreve de mãozinha leve e alma de moça.

O tema nunca deixou de ser sério para Braga. Contou-me Janio de Freitas, também adorador de passarinho e, à época, anfitrião de um sabiá-coleira, que certa vez, no apartamento de Braga, comentou que achava muito altas as pernas de um sabiá morador da “fazenda aérea de Ipanema”, como Lara Resende chamava a cobertura do cronista. Em seguida, a conversa tomou outra direção; não se falou mais no assunto naquele dia. Pouco tempo depois, encontraram-se casualmente na avenida Visconde de Pirajá. Janio estava acompanhado da filha, e Rubem os convidou para tomar um café ali perto. Mas pouco se interessou pelo líquido quentinho na xícara diante dele; estava encafifado e queria mesmo era saber o porquê da observação sobre as pernas de seu sabiá. Algo de errado? “Nada, absolutamente nada”, tranquilizou-o o jornalista e amigo; “apenas um sabiá meio pernalta, assim como qualquer pessoa pode ter pernas mais longas do que outra”. 

Quanto a Dalton Trevisan, compartilhava com Rubem Braga não só o gosto por pássaros como a admiração pela escritora francesa Sidonie-Gabrielle Colette, conhecida simplesmente por Colette e célebre moradora da 9, rue de Beaujolais, no quartier du Palais-Royal. Braga, que em 1950 morou em Paris como correspondente do Correio da Manhã, perdeu a chance de uma boa conversa com essa mulher, cuja ousada biografia se reflete muito na sua literatura. Ela morreria em 3 de agosto de 1954, admirada pelo que Rubem destaca na carta a Dalton, e de que é exemplo A ingênua libertina (1909). É desse romance a atrevida Minne, a protagonista que se daria bem, segundo o cronista, na “romântica e sórdida” Curitiba do amigo.

Broinha de fubá

Mas o que importava mesmo eram as corruíras. Quando, em 1984, Trevisan lançou Contos eróticos, Braga publicou uma crônica no Jornal do Comércio de 30 de dezembro em que louvava o talento do amigo, mas lembrava que o mundo da prostituição, temática frequente, corria o risco de se tornar ultrapassado, porque as madamas e suas pensões estavam em declínio: “Dalton, aquilo é literatura de meado de século, e olhe lá”, escreve ele, concluindo: “No fim, o importante mesmo é a cambaxirra cantando e a broinha de fubá mimosa que a gente saboreia lendo o seu livro”.

Sim, não só as cambaxirras, ou corruíras curitibanas, como também os martins, que trocaram a casa de Dalton por um galho de onde pulavam para pescar no rio. São capazes de comer um peixe inteirinho, com escamas e espinhas. Com relação à provocação sobre a “literatura de meado de século”, já no conto “Que fim levou o Vampiro de Curitiba?”, incluído em O pássaro de cinco asas (1974), Dalton indagava sobre o sumiço das polaquinhas, bailarinas, garçonetes e cafetinas de casas em extinção como Sobradinho e Petit Palais. Até o “vampiro louco de Curitiba” estava desaparecendo, arremata o contista, que ainda trataria do tema em “Educação sentimental do vampiro”, de O rei da terra (1972); “O vampiro das almas”, de A faca no coração (1975); “Balada do vampiro”, em Pão e Sangue (1988); e “Quem tem medo de vampiro?”, em Dinorá (1994). 

Casa de passarinho feita pelo tio de Trevisan (Acervo pessoal/Divulgação)

Os títulos vampirescos escondem a verdadeira personalidade do autor: amigo generoso, conversador discreto, mas divertido, leitor e devotado conhecedor de Tchekhov. Suas vindas ao Rio eram esperadas com alegria na casa de Otto Lara Resende, onde o suave Vampiro se regalava com os magníficos almoços e jantares que Geralda, a cozinheira dos Lara Resende, preparava para ele. Além disso, havia as tardes inteiras de conversa no “palacinho”, como a mesma Geralda chamava um pequeno apartamento na rua Piratininga, na Gávea, onde Otto montou seu escritório particular.

Dali, ou da casa oficial de Otto, acontecia de seguirem para a cobertura de Rubem Braga, onde o assunto podia ser os sonetos de Camões. Vampiro e Sabiá compartilhavam ainda desse gosto. Se Dalton considera o tempo no amor no soneto “Sete anos de pastor Jacó servia/ Labão, pai de Raquel, serrana bela”, que termina com “Para tão longo amor tão curta a vida!”, para Rubem, “A grande dor das coisas que passaram” é um dos maiores versos do poeta português. Reproduziu-o na crônica “O mistério da poesia”, chamando a atenção para as palavras corriqueiras da nossa língua aí contidas. Pelo jeito, não gostava só do verso, e sim de todo o soneto, cuja abertura “Erros meus, má fortuna, amor ardente” evoca no fecho da carta.

Pombo-correio

4ª. feira de cinzas, 1984.

V. me disse que aí em Curitiba vendem-se casinhas para cambaxirra fazer ninho. Ou corruíra, como vs. dizem. Aqui no Rio já houve isso; não há mais. Queria que v. comprasse e me mandasse uma dessas casinhas, como encomenda aérea. Claro que v. será ressarcido prontamente das despesas. 
Aqui, muito calor. Não tenho visto o Otto, que anda para Petrópolis e ainda não sabe onde vai trabalhar. Disse-me que outro dia o R. Marinho o convidou para ir jantar na casa dele. Foi. O jantar era para o embaixador americano, que deve ter sido a origem do convite, pois é velho conhecido do Otto: daqui, de Lisboa e outros lugares. O que tudo prova que somos um povo cordial. 
Acabo de reler (em tradução) Ingênua libertina, de Colette. A linda Minne não se daria mal em sua romântica e sórdida Curitiba. Em Paris, em 1950, estive várias vezes para ir entrevistar Colette, que vivia entrevada (mas lúcida e, segundo se dizia, bem-disposta a um bate-papo) em um apartamento do Palais Royal. Lamento não ter ido. Sou grande fã seu. Claro que muita coisa de sua literatura envelheceu; mas não sua maneira de escrever, ao mesmo tempo simples e sutil. Ela sabia as coisas, e sabia contá-las.
Aqui, muitas chateações, desânimos, erros meus, má fortuna — sem amor ardente nenhum — mas, enfim, como diz um amigo meu
Rubem

O grande fazedor de bangalôs para corruíra era meu tio Primo. Depois que ele morreu, as pobres ficaram ao relento. Procurei todos esses dias em loja de ave e feira de artesanato. Só ontem achei e hoje seguem pela Varig duas casinhas (não as obras de arte de meu tio), como convém à modéstia das nossas cambaxirras. Nem pintadas estão; segundo o vendedor, assim cada um pode pintá-las a seu gosto. Claro que não custou nada. Disponha sempre — o nosso lema é servir. 
Aqui fez o mesmo calor danado de que se queixava o nosso poeta. Agora chove sem parar, as noites são frias. Quando não chove, garoa. Culpa do calor ou dos martins errados, sumiram do meu jardim os sabiás, os tico-ticos, até as corruíras, mesmo as nanicas. 
Grande abraço do seu velho. 
[Dalton Trevisan] 

Quem escreveu esse texto

Elvia Bezerra

É pesquisadora e autora de A trinca do Curvelo (Topbooks).