Literatura brasileira,

Atenção, revisão!

Romance de escritor mineiro faz paralelo entre copista do século 16 e revisor de hoje para falar do tempo, que é implacável

26abr2024
O escritor Marcílio França Castro (Renato Parada/Divulgação)

João Guimarães Rosa, em dois contos de Sagarana, se vale de uma pontuação estrambótica para representar gesticulações de personagens que tomam a palavra na história, ou estória, como preferia o escritor mineiro: uma exclamação entre um par de reticências, assim: …!…, logo depois de uma descrição e dois-pontos. Em correspondência com um amigo que o lera, Guimarães Rosa se impacienta com o fato de ele não atentar para o arrojo gráfico, segundo ele tão notável quanto o afogamento de uma vaqueirama ou bois conversando.

Outro escritor de Minas Gerais, Marcílio França Castro, que acaba de publicar O último dos copistas, seu primeiro romance, também mete no texto uma extravagância gráfica, só que discreta, quase imperceptível. Trata-se de uma gralha, que é como na tipografia se designa um caractere fora de lugar. Geralmente as gralhas textuais são involuntárias, por displicência, desatenção na produção do livro, mas tudo leva a crer que essa é intencional. Não aponto a altura exata em que o detalhe está, para que cada um tenha o prazer de descobrir essa piscadela do autor.

Encontra-se, porém, e isso não custa dizer, no ensaio que abre o romance. Pois é. À narrativa propriamente dita antepõe-se um ensaio intitulado “O último dos copistas”, datado de 2019, quando “você sabe, o país todo estava enfiado na merda, a demência à solta, a perversidade”, como depois diz o narrador. Quem o assina é um tal de F. C., que pode ser França Castro, Franz Cafca ou qualquer outro nome encaixável nas consoantes.

O narrador, que assume a história assim que o ensaio chega ao fim, se chama Eduardo Penna e, muito culto e competente, trabalha como revisor numa microeditora. Sua narração tem forma de diálogo, com interlocução implícita do próprio F. C., que se encontra com ele num bar de Belo Horizonte. Entre diversos assuntos, a conversa dos dois envolve o ensaio, que trata de um copista chamado Ângelo Vergécio, um grego de excelente caligrafia que serviu o rei da França no século 16 e cuja letra deu origem à fonte Garamond, uma das mais utilizadas até hoje.

Os literatos, no encontro regado por café e cerveja, debatem temas, problemas e ideias, motivados pelo ensaio. E chama a atenção, afinal, que Eduardo — como o amigo leitor de Guimarães Rosa que não notou o …!…, — em momento nenhum da longa conversa mencione a gralha, decerto aferida por seu tento impecável de revisor. Talvez tenha preservado o direito à abstenção. É possível, já que não lhe competia revisar aquele texto (estaria apenas discutindo seu conteúdo); mas improvável, de tanto que leva seu ofício de revisão para a vida como um todo.

O último dos copistas, aliás, faz um movimento frequente que vai das letras para a vida. França Castro ajusta, por exemplo, a questão da imigração, muito em voga na literatura contemporânea, mas que no geral soa desafinada quando praticada no Brasil, que comparado a países europeus tem porcentagem consideravelmente inferior de imigrantes. É a partir de um livro sobre imigrantes em Belo Horizonte, publicado pela editora em que Eduardo trabalha, que se apresenta um dos personagens, o nigeriano Ibrahim. Possíveis histórias de guerra, de genocídios, de périplos arriscados, de enfrentamento a políticas anti-imigração se limitam ao livro fictício, borgeano, a que nós leitores não temos acesso. O personagem Ibrahim de O último dos copistas, sem passado trágico aparente, é retratado com dignidade, tem uma galeria de arte e até, ouso sugerir, desperta uma pontinha de ciúme no narrador por causa da boa relação com Lygia.

Lygia Delgado. Esta é outra personagem importante. Ilustradora e colega de Eduardo, divide com o ensaio sobre o copista a centralidade da conversa entre o revisor e F. C. Torna-se, na verdade, conarradora quando, numa viagem em busca de si mesma enquanto os homens falam sobre ela, escreve uma série de postais, reproduzidos com o lado da imagem e tudo, e uma carta que fecha o livro. Também tendo lido o ensaio, ela se detém na existência de uma suposta filha do copista, mencionada apenas de passagem, que ilustrava as cópias manuscritas pelo pai.

O paralelo entre as ilustradoras de épocas diferentes é patente, e o espelhamento está por toda a parte no romance. Elas duas; revisor e escritor; texto e imagem; o imigrante Ibrahim e de novo o revisor, que nunca saiu do país; as consultas a bibliotecas como fonte de pesquisa e o Google; faculdades humanas e inteligência artificial; e talvez a dupla mais relevante de todas: passado e presente.

O copista Ângelo Vergécio habitou o mundo no período em que a técnica de copiar à mão se tornava obsoleta perante a difusão da prensa móvel, muito mais produtiva. O revisor Eduardo Penna vive hoje e se sente “no meio do caminho, com um olho lá, outro cá”. Assim como as tecnologias de então engoliram o copista, as de agora também o ameaçam. O último dos copistas põe em cena o preciso instante que antecede uma extinção, para mostrar que o tempo passa para todos, a vida muda. Há quem se mova no mesmo ritmo que ela, se adapte, se transforme; e há quem se veja sem condições para sair do lugar. Os obsoletos, no entanto, não precisam se preocupar demais, pois a eles está afiançada uma sobrevida. O fantasma de Ângelo Vergécio não deixa mentir e dá corpo à Garamond.

É no lugar do copista[…] que se pode lavar a mão com água fresca, fruir a expectativa de algo por vir, os apontamentos sem solução, um tremor labial ou um balbucio, tal como o da criança aprendendo a falar ou o do tradutor que não imergiu por completo no novo idioma. Para tornar‑se escritor, é preciso sempre se tornar escriba.

Como já se podia atestar nas Histórias naturais, seu livro anterior, França Castro é, antes de tudo, um escriba profissional, com verdadeira paixão pelas letras, palavras, frases, pelos livros e sonhos de que são feitos. Aos leitores igualmente apaixonados, resta esperar que O último dos copistas seja o primeiro de muitos romances do autor, pois cada livro com essa qualidade é uma página limpa, revisada, sem erros, que aumenta, e muito, o valor do catálogo da literatura brasileira.

Quem escreveu esse texto

Luis Campagnoli