Arte e Estética, Literatura,

Crônicas do mundo flutuante

Em dezenas de gravuras, pinturas e textos, obra monumental descreve três séculos de arte erótica do Japão feudal

13nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18

O romance mais antigo do mundo, o Genji Monogatari, é também um dos mais envolventes que já li (na suntuosa tradução para o inglês, The Tale of Genji, de um mestre da modéstia, Arthur Waley, que entre 1921 e 1933 o revelou à cultura ocidental). Escrito nos primeiros anos do século 11 por Murasaki Shikibu, uma dama da corte imperial, narra as peripécias eróticas de três gerações de aristocratas japoneses. O mais destacado, o Genji do título, é um príncipe supersexuado que, por seu encanto, beleza, finura, inteligência e talentos, seduz mulheres sem conta. Chamam-no de “o resplandecente”, mas é sobretudo por ter bom caráter que ele cria em torno de si um ambiente sempre auspicioso.

O que mais impressiona no estilo de Murasaki, quer nos relatos sobre Genji, quer nos que abordam a legião de personagens que seguirão rumos idênticos, é a sutileza vaporosa com que as cerimônias do amor se realizam. Poemas levados por emissários são sinais obrigatórios para o início de tratativas galantes. As trocas são tão intensas, quando há receptividade e interesse, que quase oitocentos poemas se intercalam à caudalosa narração em prosa.

As mensagens de amor, nunca diretas, corporificam-se em imagens delicadas, nas quais surgem por norma reverentes referências às belezas da vida. Aromas, texturas, cores, todas as mais discretas filigranas, todos os vislumbres mais tênues são peças essenciais à manifestação dos desejos. O romance é fundamentalmente erótico, mas nenhuma cena de sexo jamais sequer é esboçada: sabe-se apenas, quando muito, que um homem e uma mulher dormiram juntos.

Seis séculos mais tarde, gravuras baseadas em passagens marcantes do célebre romance de Murasaki Shikibu tornaram-se comuns na abundante produção visual de que se ocupa A erótica japonesa na pintura & na escritura dos séculos 17 a 19, de Madalena Natsuko Hashimoto Cordaro. E é muito forte o contraste entre o grosso dessa produção mais recente e a decorosa leveza literária que restou dos tempos da antiga aristocracia sediada em Quioto.

Durante o longo intervalo coberto pelo livro, toda a estrutura do Japão sofreu profundas mudanças. Poucos anos depois de assumir o governo, em 1603, o xogunato Tokugawa, que se instalou em Edo, a atual Tóquio, e se manteve no poder como ditadura até a restauração imperial de 1868, deu permissão para que áreas de prazer específicas funcionassem em diferentes cidades. Abria-se com isso uma brecha no mandonismo austero e repressivo dos xóguns.

Mundo flutuante

Nos bairros Yoshiwara, de Edo, licenciado em 1617, Shinmachi, de Osaka, em 1620, e Shimabara, de Quioto, em 1641, criaram-se os primeiros modelos da vida livre admitida nos estabelecimentos do “mundo flutuante”, nome disseminado no Ocidente a partir do inglês floating world. Segundo Ivan Morris, na introdução à sua tradução de The Life of an Amorous Woman, de Ihara Saikaku (1642-93), no final do século 17 já havia mais de cem desses bairros através do país, todos em grande ebulição. O Yoshiwara, a essa altura, contaria com cerca de 150 casas e abrigaria quase 3 mil prostitutas, junto com uma população variável de criadas, dançarinas, músicos, pelotiqueiros, gigolôs, mascates.

É frequente entre estudiosos da cultura japonesa, como Madalena Cordaro, Ivan Morris e Paul Gordon Schalow, outro tradutor de Saikaku para o inglês, a afirmação de que o contraste entre o decoro aristocrático e a crueza com que o sexo explícito na era Tokugawa é retratado ou descrito tem íntima conexão com alterações ocorridas na composição do país. Quatro camadas sociais — os samurais ou guerreiros, os agricultores, os artesãos e os comerciantes — mantiveram-se por longo tempo em espaços distintos. Mas, desde o século 17, com o Japão completamente fechado para o resto do mundo, a população aumentou, as cidades se desenvolveram e o comércio interno deu saltos.

A classe comercial, nesse novo contexto, tornou-se cada vez mais numerosa e rica, subvertendo as divisões estanques e sobrepondo afinal sua influência à dos senhores feudais em retração. Burgueses endinheirados surgem com frequência nos textos de Saikaku, talvez o autor que mais revele detalhes de práticas sexuais correntes na época do xogunato, e são esses ricaços citadinos que constituem a habitual clientela dos prazeres bem caros que o mundo flutuante oferece. Em The Great Mirror of Male Love, livro também de Saikaku, seu tradutor Paul Gordon Schalow informa que “o sexo recreativo, com mulheres ou garotos que se prostituíam, era uma prerrogativa do cidadão que pudesse pagar os preços e sem estigma escolhia entre eles”.

O acervo monumental de gravuras reproduzidas nos dois volumes, igualmente monumentais, de A erótica japonesa parece em si um indício de que a produção dessas imagens, antes de tudo, constituía um bom negócio. De fato, se houve artistas de renome criando obras com a mesma temática, houve também muitos produtos anônimos e oficinas destinadas a imprimir séries em larga escala. Em certas gravuras, pênis e vaginas enormes, totalmente desproporcionais ao tamanho do corpo, surgem ressaltados em primeiríssimo plano. Logo se entende que aí vinha embutida a intenção de atribuir às exaltadas imagens cunho promissor de estimulante para os desfrutes do sexo.

Na apreciação de tais trabalhos, o aspecto comercial evidente poderia turvar o gozo de um olhar de puro esteticismo. Mas, numa terra de requintes como o Japão, qualquer minúcia do cotidiano, como na terra-mãe, a China antiga, consegue ser transformada em sofisticação ritual. Assim, até mesmo em gravuras de inclinação mais grosseira, no fundo ou no entorno das composições se percebe — nas dobras das vestimentas, na ondulação dos penteados, nos gestos de plantas que se alongam para roçar formas humanas, nos padrões dos tecidos decorativos ou na placidez geométrica dos móveis que dão definição ao recinto — aquele toque espontâneo de soltura que é típico dos voos ousados dos pincéis do Oriente.

Sob o título “Algumas práticas femininas”, o capítulo inicial da obra de Madalena Cordaro, na origem uma tese de livre-docência defendida na USP, dedica-se principalmente à análise de formas, usos e significados dos pênis artificiais que aparecem, com notável frequência, nas gravuras da época. A primeira imagem da série, de Katsushika Hokusai (1760-1849), não traz figuras humanas. É uma espécie de catálogo para o incremento de atos sexuais, mostrando pílulas, incensos, ervas e variados pequenos apetrechos que teriam funções afrodisíacas. O item mais curioso é um pênis artificial de duas cabeças, em casco de tartaruga, e indicado para a mútua penetração de mulheres que poderiam trocar beijos e afagos, enquanto isso, e assim chegar ao clímax do prazer compartilhado.

Numerosas estampas, reproduzidas logo em seguida em dezenas de páginas, mostram mulheres que se masturbam, ora sozinhas, ora ajudadas por outras ou em grupo, com tipos variados de falos falsos. Há um aspecto risonho, muitas vezes, nessas imagens de um prazer que prescinde da companhia de homens, e esse aspecto é mais perceptível quando as gravuras retratam vendedores de pênis artificiais que estão oferecendo seus produtos a clientes atentamente debruçadas no exame das mercadorias.

A frequência do tema nas gravuras permite deduzir que a masturbação feminina era prática bastante comum no Japão dos xóguns

A frequência do tema nas gravuras e diversas alusões ao assunto em textos da mesma época aliam-se para permitir à autora deduzir que a masturbação feminina era prática bastante comum no Japão dos xóguns. Um viés conceitual permitiria supor que havia aí uma afirmação das mulheres em relação ao peso histórico da submissão que lhes fora imposta, por séculos, pelo poder falocrático. No desfrute de prazeres solitários, por outro lado, admite-se que as pinturas eróticas ukiyo-e, imagens como essas que se acham agora ao nosso alcance, servissem de habitual incentivo para a imaginação entregue à volúpia.

Garotos

Meticuloso destaque também é dado, em A erótica japonesa, às relações com garotos que desde cedo eram preparados para um trabalho de curta duração como profissionais do sexo. “O usufruto dos garotos”, como escreve Madalena Cordaro, “se comercializa no período Edo, mas é uma continuidade de períodos anteriores; até o período Kamakura [1185-1333], estava centralizado nos templos budistas, que proibiam as relações amorosas com mulheres — na verdade, uma das muitas paixões das quais deveriam se desapegar os neófitos para alcançar a iluminação”.

A partir do século 17, textos e imagens nos indicam que o amor por meninos saiu da esfera dos templos, e também dos hábitos dos samurais, para tornar-se uma atração corriqueira nos estabelecimentos do mundo flutuante e suas áreas de suposta influência. Muitos garotos de programa, que normalmente só trabalhariam dos quinze aos dezoito anos, eram recrutados entre os aprendizes do teatro kabuki, onde todos os papéis, inclusive os femininos, só podem ser representados por homens. Não havendo lugar no palco para todos os aspirantes às artes cênicas, depreende-se que os menos talentosos fossem destinados aos ofícios do sexo. A questão econômica, ao que parece, pesava no destino de adolescentes originários do povo: ou as famílias os vendiam para patronos ricos ou redes comerciais, ou eles tinham de se virar como podiam para enfrentar as agruras da subsistência.

Hishikawa Moronobu [?-1694] foi o primeiro pintor de ukiyo-e a representar o amor por garotos na produção de xilogravuras. Ao analisar suas diversas e expressivas imagens reproduzidas na obra, a autora lembra que “a combinação a três em cenas eróticas comumente associará um garoto que é usufruído tanto pela esposa quanto pelo marido que é protetor dele, ou é a esposa (ou consorte) que, em meio a ambos, se apraz mais”.

Seja nas legendas das próprias estampas, seja em textos populares, comentados e muitas vezes traduzidos em A erótica japonesa, minuciosos receituários para o incremento das práticas sexuais eram de praxe nos princípios do mundo flutuante. No tocante aos garotos destinados à saga dos prazeres, ao ser citada uma obra anônima de cerca de 1770, nada é tão extraordinário quanto o que a autora chama de “o treinamento do ânus”, especificando que isso “começava por volta dos doze anos, com inserção de objetos em regularidade e dimensões crescentes, sendo falha do amo se ocorressem fissuras ou feridas no ‘venerável poço’. Após passar óleo medicinal no dedo mindinho, inseria-se-o no ânus do garoto delicadamente até que fosse fácil o movimento de entrar e sair. Deixando dois dias de espaço, a seguir era a vez de o dedo anular agir; um dia depois, a do indicador, e se repetia o procedimento até chegar a do polegar”. Varinhas e outros objetos também eram usados para alargar o ânus dos meninos até a aceitação indolor de um pênis grande.

É arriscado pensar que as práticas descritas na obra tenham sido de adoção generalizada nos quase trezentos anos de dominação Tokugawa no Japão. Tanto imagens como textos são obras de ficção, não documentários antropológicos. A ficção, porém, é um indício para supor realidades que um dia podem ter sido. E é importante que esta obra sobre costumes anômalos ou prazeres recônditos seja lançada agora, quando a realidade assume no Brasil ares de intolerância antiquada e inútil contra a expressão tão natural e tradicional do sexo em manifestações artísticas.

Quem escreveu esse texto

Leonardo Fróes

É autor de Trilhas: poemas 1968-2015 (Azougue).

Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.