Literatura japonesa,
Nas pegadas de Bashô
Narrativa de viagem do mestre do haikai é um exemplo de abertura do poeta para o mundo e para a sabedoria popular
01jul2020 | Edição #35 jul.2020Quando a ditadura militar começou a entrar em declínio, prometendo aos brasileiros, ante os avanços da sociedade civil, uma abertura lenta, gradual e segura de seu regime despótico, um jovem poeta carioca, o até hoje desconhecido Samaral, reagiu com este poema sintético à lenga-lenga do generalato:
COM AS MASSAS TUDO,
SEM AS MASSAS NADA.
OU AMASSA TUDO,
OU NÃO AMASSA NADA.
A década de 1980 estava no início, e os anos anteriores tinham sido de rebeldia explosiva e fértil nos arraiais da poesia. Os poetas de vinte anos, os da “geração mimeógrafo”, não se opunham somente à linha dura de um poder usurpador não eleito. Opunham-se à repressão como um todo, porque as muitas vivências destoantes que os traziam à cena exigiam também urgentemente novas liberdades comportamentais. Avessos à dicção culta e empolada de seus predecessores imediatos, ou ao lirismo engravatado, os poetas de então soltaram uivos a esmo, denotando marcada preferência por formas leves e breves.
Definida essa tendência, o haikai, antes praticado por poucos e quase sempre restrito a atividades da comunidade japonesa, de repente caiu no gosto dos jovens e foi submetido a variações infinitas. Em 1981, em um livro lançado pelo Pasquim, apresentado por Luis Fernando Verissimo e intitulado, bem a propósito, Punidos venceremos, o poeta gaúcho Fraga demonstrou sua adesão à linha participante em haikais como este:
PELA MINHA VISTA
MARCHA O GANSO
A PASSO DE NAZISTA.
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Embora o humor e a sátira tenham constituído no Japão uma vertente expressiva da tradição do haikai, nem o grande mestre do gênero, Matsuo Bashô (1644-94), nem seus numerosos discípulos revelam em suas criações preservadas algum particular interesse por disputas políticas. Mas uma das características mais visíveis nos poemas por eles desenhados é a decisão radical de integrar-se à natureza, vivendo de acordo com ela e aprendendo a respeitar todos os seres vivos. Em seu sentido mais amplo, isso hoje é uma atitude política, talvez a mais avançada, de parcelas atuantes e alertas da população mundial.
Mundo flutuante
Por volta dos 35 anos, Bashô, que morreu aos cinquenta, retirou-se da vida em Edo, a atual Tóquio, onde participara de círculos letrados e atuara como professor, para tornar-se um eremita em deslocamentos constantes ou um poeta andarilho. A capital que ele deixou para trás passava por uma fase, a do chamado “mundo flutuante”, de intensa fermentação cultural. Mas os progressos do teatro, da gravura em madeira, da prosa erótica fartamente consumida em livretos ilustrados e de outros tantos prazeres aliavam-se aos transtornos inerentes aos tumultos humanos. A esses problemas de sempre os poemas de Bashô contrapunham um inesperado requinte, ao mostrar que a simplicidade e o sossego eram vias promissoras para quem quisesse se exercitar na arte tão cobiçada de viver contente e em paz.
Em Oku no Hosomichi (que de início se intitulou no Brasil Sendas de Oku, mas também é conhecida pelo título inglês The Narrow Road to the Deep North), a mais famosa e traduzida das cinco narrativas de andanças pelo Japão que ele deixou, Bashô se refere às agruras enfrentadas pelos caminhos tortuosos e árduos, em geral distantes de tudo, mas escreve com pompas de alegria, em um dos trechos curtos em prosa aos quais entremesclava seus primorosos haikais, que “o prazer de viver me levou a esquecer o cansaço da viagem e quase me fez chorar”.
Quem anda, e anda tudo quanto pode, percebe que a cada passo lhe vem, por maior que seja a estafa, uma nova injeção de entusiasmo. Agulhadas de vento, pingos de chuva, o suor que molha o corpo e o pulsar do próprio sangue misturam-se às lambidas do sol e às carícias que a sombra queira fazer para deixar o caminhante obstinado numa espécie de plenitude que o eleva, consola e emociona. A cabeça se esvazia. A liberdade se afirma. O eu parece dissolver-se, ou pelo menos pode ser descartado em qualquer beira de estrada como um simples e embaraçoso pacote de fantasias inúteis.
Bashô tinha 45 anos quando partiu à deriva pelas trilhas de Oku, numa aventura que só terminaria mais de dois anos depois. Perambulando, dormiu em choças, modestas estalagens, casinhas de pobres, albergues de mosteiros. Esteve à beira-mar, andou na areia das praias, velejou em barcos toscos. Subiu ao cume de montanhas sagradas, visitou templos e ruínas de templos, túmulos lendários e construções de outras eras. Conversou com lavradores, pescadores, estalajadeiros, prostitutas e eremitas como ele, constatando que as pessoas do povo, por mais simples que sejam, podem ter o que dizer e ensinar a um poeta aberto para o mundo. No relato que escreveu, fez questão de dizer que não seguia nas pegadas dos antigos, muito embora fosse em busca do que eles tinham buscado.
Brasil
Tão logo introduzida no Brasil a novidade japonesa, quando só uns poucos pioneiros isolados já escreviam haikais em português, houve forte resistência ao gênero por parte de escritores apegados a outros padrões de gosto. A principal alegação contra as esparsas tentativas do início era que seria impossível dizer alguma coisa notável em apenas três versos.
Tal argumentação ignorava decerto que desde o começo do século 20, em várias línguas ocidentais, foram escritos poemas em diferentes formas brevíssimas que sempre tinham por alvo a concisão mais extrema, assemelhando-se por isso no espírito ao despojamento do haikai. Em 1913, Guillaume Apollinaire incluiu em seu livro Alcools o muito enigmático “Chantre”, poema de uma linha só (Et l’unique cordeau des trompettes marines). Em 1933, do livro Sentimento del tempo, de Giuseppe Ungaretti, constava o claro “Mattina”, que se resolve em dois versos:
M’ILLUMINO
D’IMMENSO.
Em nossa época, quando centenas de poetas se manifestam através de haikais, publicando livros a rodo pelo Brasil afora, alguns se destacaram não só por escrevê-los, mas também por terem tido uma atuação importante na propagação do gênero. Citando apenas uns poucos, é o caso de Paulo Leminski, Alice Ruiz, Ledusha, Paulo Franchetti, Alberto Marsicano, Olga Savary e Carlos Verçosa.
Os dois últimos fizeram traduções integrais de Oku no Hosomichi e ambos conservaram em seus trabalhos o mesmo título, Sendas de Oku, da tradução para o espanhol na qual se basearam. Esta, de Octavio Paz e Eikichi Hayashiya, publicada em 1957 no México, foi provavelmente a primeira a aparecer no Ocidente. A tradução de Savary saiu em duas edições pela Roswitha Kempf, em 1983 e 1987. A de Verçosa é apenas a primeira parte de um volume de 568 páginas que se intitula Oku, viajando com Bashô. Na segunda, em longo ensaio, o tradutor traça um histórico da evolução do haikai no Brasil, comentando e citando à larga dezenas e dezenas de exemplos. Publicado em 1995 pela Secretaria de Cultura da Bahia, em tiragem limitada, o livro de Verçosa é hoje uma joia rara, mas indispensável a quem queira se aprofundar no assunto.
Em 2016 foram lançadas em português as duas primeiras traduções da obra mais famosa de Bashô feitas diretamente do japonês: em Portugal, a Assírio & Alvim publicou-a como O eremita viajante, em tradução de Joaquim M. Palma; no Brasil, a edição da Escrituras se intitula Trilhas longínquas de Oku e é assinada pela tradutora e professora Meiko Shimon.
Nota do editor
Trilhas longínquas de Oku foi o livro de junho no Clube de Leitura da Japan House São Paulo, realizado em parceria com a Quatro Cinco Um.
Este texto foi realizado com o apoio da Japan House São Paulo
Editoria com apoio Japan House São Paulo
Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.
Matéria publicada na edição impressa #35 jul.2020 em maio de 2020.