Literatura,
A um passo do horror
Em seus contos, Samanta Schweblin está mais interessada em revelar a faceta monstruosa da realidade do que em lhe dar um corpo visível
28jul2022 | Edição #60Nos contos de Samanta Schweblin, a realidade parece estar sempre em confronto consigo mesma: refratada, deslocada, interrompida, desfocada. Assim, em Pássaros na boca e Sete casas vazias: contos reunidos, livro recém-lançado em bonita edição pela Fósforo, a escritora argentina consegue, em seus melhores momentos, deliciar o leitor com pesadelos em miniatura, cheios de imagens insólitas narradas com fluidez narrativa.
Schweblin, argentina nascida em Buenos Aires, em 1978, e atualmente morando na Alemanha, possui uma carreira de destaque nas letras hispano-americanas contemporâneas. Seus livros foram traduzidos para mais de vinte línguas e têm ganhado prêmios literários importantes, como o Juan Rulfo, o Casa de Las Américas, o Shirley Jackson e o Konex-Diploma al Mérito. A escritora participou da seleção de melhores jovens escritores de língua espanhola da revista britânica Granta, em 2010, e foi três vezes finalista do Man Booker International Prize. Em 2022, o conto “Um homem sem sorte”, publicado nesta edição da Fósforo, foi um dos vencedores do prestigiado O. Henry Prize. Além disso, seu romance Distância de resgate, lançado no Brasil pela editora Record em 2016, foi adaptado para o cinema pela cineasta peruana Claudia Llosa, sob o título O fio invisível.
Em ótima tradução do escritor Joca Reiners Terron, a nova antologia compila os livros Pássaros na boca, publicado originalmente em 2009, e Sete casas vazias, de 2015. Schweblin se inscreve em uma geração composta em especial de escritoras que têm revitalizado a literatura insólita e/ou brutalista nas letras hispano-americanas. Nomes como Giovanna Rivero, Mariana Enríquez, Mónica Ojeda, María Fernanda Ampuero, Fernanda Melchior, Pilar Quintana, Liliana Colanzi, Jacinta Escudos e Dolores Reyes podem ser lembrados. Todas, exceto a salvadorenha Escudos e a boliviana Colanzi, foram publicadas no Brasil nos últimos anos. Apesar da constante presença da violência em seus contos e romances, essas escritoras dificilmente aderem a um registro estritamente realista. Encontramos nesses livros um ponto de fuga a partir do qual a realidade é reinventada por um tipo de imaginação muito específico, nutrido pelas maldições vampirescas do soturno, da cultura gótica, das histórias de horror e dos romances e filmes noir. Em algumas delas, encontramos, ainda, referências à ficção científica.
Política e terror
Há, além disso, um compromisso político em todas essas narrativas, que constroem alegorias sobre história latino-americana, violência de gênero e tensões sociais. Em entrevista ao blog Página Cinco, do jornalista e crítico Rodrigo Casarin, Schweblin reflete sobre a dimensão política do seu trabalho como ficcionista: “Viemos todos de países latino-americanos que foram e seguem sendo sistematicamente violentados pelas políticas externas e internas, pelas maneiras como nossas histórias têm sido manipuladas, fomos e seguimos sendo saqueados por mais de quinhentos anos. E o pior é que normalizamos grande parte disso tudo. Do que mais escreveríamos senão a partir do insólito e do horror?”.
Horror é uma palavra-chave para entendermos os contos de Schweblin. Mas ele possui em Pássaros na boca e Sete casas vazias uma dinâmica particular. Isso porque os contos podem ser definidos como compostos de uma certa estranheza. Sem nunca mergulhar totalmente no horror, nem em um puro absurdo, a realidade está distorcida, porém em gradações sutis, por isso mesmo insólita e terrivelmente reconhecível. É como se o mundo dos contos de Schweblin se passasse em uma dimensão paralela à nossa.
A vida cotidiana, os campos e as cidades são quase semelhantes aos nossos.
É como se o mundo dos contos de Schweblin se passasse em uma dimensão paralela à nossa
Estamos a um passo do horror, como é o caso de contos como “Pássaros na boca” ou “Meus pais e meus filhos”, dois dos melhores do livro. Pássaros na boca e Sete casas vazias coloca leitoras e leitores na corda bamba da fronteira do abismo — daí o medo e a tensão, sentimentos nascidos da iminência da catástrofe e habilmente manipulados pela autora. Portanto, seus contos estão localizados na antessala do horror. Eles quase sempre se passam no equivalente aos primeiros trinta minutos dos filmes do gênero, quando a normalidade ainda não foi fraturada pela ameaça. É por isso que o monstro nunca aparece em Pássaros na boca e Sete casas vazias: Schweblin se interessa mais em revelar o monstruoso, tanto na realidade quanto no tecido social pelo qual suas personagens transitam, do que em lhe dar um corpo, ou uma revelação. Há um caráter abstrato na caracterização do mal e do absurdo nesses contos — esse é um dos seus grandes trunfos estéticos.
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Pássaros na boca, no entanto, sofre por ser irregular em qualidade. Temos obras-primas, como o já citado “Pássaros na boca” ou o desconcertante “A mala pesada de Benavides”, somados a uma maioria de outros que são pouco mais do que um voo de superfície, confiando em excesso na pura criatividade do insólito. Pássaros na boca deixa a sensação de que tinha um potencial maior. Faltam personagens mais interessantes e maior densidade, por exemplo.
Sete casas vazias, por outro lado, cumpre todas as promessas: eu não hesitaria em afirmar que se trata de um dos melhores livros de contos contemporâneos que li na última década. Linguagem, sensibilidade insólita, tensão narrativa, desenvolvimento de personagens, violência, horror, mistério: está tudo bem urdido e envolto em alta voltagem criativa. O tema da família, entendida como uma seita pessoal em “Nada disso tudo”, ou como um universo paralelo em “Meus pais e meus filhos”, contribui para uma maior unidade do conjunto.
A escrita também se refina, com momentos de boa elaboração literária, como neste trecho: “É um poder e uma responsabilidade com os quais não sei o que fazer. Seus olhos claros se umedecem: a confirmação final dessa sincronia insólita. Olho descaradamente para ele, sem lhe deixar nenhum espaço de intimidade, pois não posso crer que isso esteja acontecendo nem suporto o peso que tem sobre mim”. Sincronia insólita: expressão que define com perfeição Pássaros na boca e Sete casas vazias, cujo maior mérito consiste em nos ensinar a estranheza profunda do mero ato de existir no mundo.
Matéria publicada na edição impressa #60 em julho de 2022.