Literatura brasileira,
O terror vem da alma
Contos de Cristhiano Aguiar mostram que é preciso conviver com o perigo, seja ele sobrenatural ou simplesmente cruel
01mar2022 | Edição #55Gótico nordestino, do escritor paraibano Cristhiano Aguiar, traz uma sucessão de impactos cumulativos, cada um deles caindo sobre o leitor de uma direção diferente, com um novo elenco de imagens fortes e de temas subliminares. O título pode soar como a afirmação de uma estética deliberada, de uma filiação consciente a duas vastas vertentes narrativas.
“Gótico” e “nordestino” são dois repositórios de mitos e de enredos capazes de sugerir as combinações mais variadas. O gótico, em seu aspecto mais amplo, pode ser visto como uma narrativa trágica na qual ocorre a invasão do sobrenatural no mundo físico e do Passado no Presente. A literatura gótica, que no século 20 foi popularizada como “literatura de terror”, é em sua origem uma invasão do delírio medieval bem no meio do racionalista e mecanicista século 18.
William Faulkner, numa boutade famosa, disse certa vez: “O Passado nunca está morto. Ele nem sequer passou”. Esse Passado que não passa é de uma natureza muito diferente da do “tempo resgatado” de Marcel Proust, cheio de epifanias e de amarguras cujo resgate pode justificar uma vida. No mundo onde transcorrem as narrativas de Faulkner é outra coisa. É um Passado que sobreviveu a tentativas de destruição, cancelamento, repressão e conspiração de silêncio. É a catapulta na qual se prepara o Retorno do Reprimido freudiano.
Faulkner sabia do que estava falando, e ninguém se admira do fato de “Southern Gothic” ser hoje um rótulo corriqueiro no mercado editorial de língua inglesa, reconhecível desde a literatura de Flannery O’Connor e do próprio Faulkner até séries populares de TV como True Detective. O Sul estadunidense e o Nordeste brasileiro espelham-se um no outro, através de um vidro tisnado pela chama das fogueiras físicas ou sobrenaturais.
Matagal de medos
Nos contos de Cristhiano Aguiar, não se vê o esforço de dar “cor local” ao ambiente anunciado, esforço que muitas vezes prejudica quem escreve à distância. As locações nordestinas são mencionadas de passagem, sem obrigação de registrar detalhes típicos, daqueles que um autor distanciado anota durante a pesquisa. Quando há vivência pessoal, o autor traz esses detalhes arquivados não no banco de dados, e sim na memória afetiva. Isso os faz emergir quase por acaso, num detalhe de cenário aqui, um termo coloquial acolá, um nome de rua ou de bairro que surge de maneira casual, mas coerente e verossímil.
São contos que vêm de um matagal de medos recolhidos onde é possível transformar em aventura alheia um pesadelo, uma culpa mal administrada, uma fobia sob controle. Alguns desses temas indicam uma curiosa forma de retorno do Passado. É o caso dos ressuscitados do conto “Lázaro”. Pessoas morrem e “envivecem” de novo. São as mesmas? São outras? É pra trazer pra casa? É pra trancar num abrigo e esquecer? Esse tema tem brotado de maneira insistente no fantástico recente, em séries como a francesa Les Revenants (2012-15) e a islandesa Katla (2021), em romances de ficção científica como a trilogia Southern Reach (2014), de Jeff VanderMeer, e a aventura amazônica de Roberto de Sousa Causo em O par (2008).
Nesse mundo de medo cotidiano, pouco importa se o perigo dos contos vem de uma maldição secular ou das guerras do presente
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Mais perto do nosso tempo e de sua sedução camicase pela própria destruição é “Firestarter”, em que a internet, o gps e a web servem de mapa e roteiro para grupos de colecionadores de incêndios. Eles se deleitam com esse espetáculo tal como, na ficção científica dos anos 60, discretos viajantes do futuro vinham curtir o hedonismo daquela década irrepetível.
Onças, vampiros, fantasmas, cangaceiros; ameaças que se abatem com um peso asfixiante sobre pessoas que não têm como resistir nem para onde migrar. É preciso conviver com o Mal e com o perigo, seja ele sobrenatural ou simplesmente cruel. O perigo se espalha em feudos que exercem um poder de atração e de ameaça. Está por toda parte, impõe leis arbitrárias e absurdas, força uma convivência de quem caminha por um terreno minado. Nesse mundo de medo cotidiano, pouco importa se o perigo vem de uma maldição secular ou das guerras do presente. Pouco importa se vem de seres bizarros ou de homens armados. Os protagonistas desses contos são muitas vezes crianças, e para elas só há uma saída: entender o que está se passando, agir de acordo, sobreviver.
Cada cena, em vez de responder aos enigmas em aberto, responde a uma pergunta que não fizéramos e propõe outras
Aguiar não usa enredos acelerados e finais arrasadores. Os contos se constroem à base de uma progressão gradual de situações desconcertantes. Cada cena, em vez de responder a enigmas deixados em aberto na cena anterior, responde a uma pergunta que não fizéramos e propõe outras. São narrativas feitas de idas e vindas, que cobrem, descobrem e revelam aos poucos um terreno de suspeitas sinistras.
A literatura “de terror” de hoje costuma ser referencial, distribuindo piscadelas literárias a torto e a direito. Aguiar é econômico nessas avalizações clássicas, com um pequeno número de referências diretas: Henry James, Lovecraft, Stephen King… Ele confia mais na solidez pulsante dos mitos em si e na sua capacidade de puxá-los aos poucos para dentro do ambiente que nos faz ver. O terror não tem griffe, não tem dono nem nome. Como afirmou Edgar Allan Poe, ele não vem da Alemanha: vem da alma.
Os contos de Gótico nordestino tecem sua própria rede de imagens cotidianas cuja natureza perturbadora se espalha num lento contágio: teias de aranha, algodão-doce, paina… Insetos que em minutos cobrem de asas fervilhantes as paredes de uma casa, ou então gomos vegetais que ao ser partidos revelam em seu interior uma vérmina raivosa. Coisas guardadas, incubadas, soterradas, emparedadas… e que não param de atrair a curiosidade suicida e gozosa dos jovens para quem o Passado já passou.
Matéria publicada na edição impressa #55 em outubro de 2021.
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