Literatura Negra,

Herança como escrita

Bernardine Evaristo descreve como estudar a diáspora africana e a identidade mestiça conferiu complexidade à sua literatura

01nov2022 | Edição #63

Memórias de autores e artistas podem ser leituras instigantes para quem se interessa por processos criativos e histórias de bastidores. Manifesto, de Bernardine Evaristo, destaca-se por ser um relato saboroso e bem-humorado, que articula reflexões sobre origens multiculturais, raça e classe. A escritora, que recebeu o Booker Prize em 2019 pelo romance Garota, mulher, outras, tem uma trajetória ligada às artes desde a década de 80. Ao se formar na Faculdade Rose Bruford, fundou a companhia Teatro das Mulheres Negras com duas colegas e escreveu, dirigiu e produziu peças teatrais com personagens complexas, fugindo dos papéis subalternos oferecidos para atrizes negras. Também escreveu poesia durante anos, participou de antologias e publicou vários romances, refinando seu estilo de ficção em versos e desenvolvendo uma forma particular de estruturar o texto, que batizou de ficção de fusão.


Manifesto, de Bernardine Evaristo, destaca-se por ser um relato saboroso e bem-humorado, que articula reflexões sobre origens multiculturais, raça e classe

Manifesto inclui comentários sobre a insatisfação com o próprio texto e a necessidade de trabalhar em várias versões de um livro. A autora relata como jogou fora a primeira escrita do romance biográfico Lara e o reescreveu inteiramente em versos. Fez ainda pequenas alterações em edições posteriores do texto, pois a passagem do tempo lhe deu coragem de incluir histórias de sua família. Ao revisitar suas origens familiares e episódios marcantes de sua infância, Evaristo fala da importância da leitura e da escrita desde cedo em sua vida. Ela também observa como questões sociais e traços de sua personalidade formaram sua ética de trabalho e sua tenacidade. O fato de ser uma de oito filhos em uma família inter-racial, formada por um nigeriano imigrante e uma professora católica, fez com que percebesse ainda menina as desigualdades associadas à cor de sua pele e ao seu gênero, o que fortaleceu características como o inconformismo, a ambição e o desejo por independência.

As memórias da escola e da formação católica incluem episódios de racismo e reflexões sobre a necessidade de encontrar formas de reagir às injustiças e de proteger a própria subjetividade e a criatividade em uma sociedade preconceituosa. Evaristo não dá conselhos aos leitores, mas compartilha como pesquisar as histórias dos dois lados da família, e estudar a diáspora africana lhe propiciou uma perspectiva da identidade mestiça como algo rico, dotado de múltiplas heranças culturais, que ela então usou em sua literatura para dar complexidade e nuances a narrativas e personagens.

‘Manifesto’ é uma leitura saborosa que estimula escritores a se arriscarem criativamente

Dois de seus livros ainda inéditos no Brasil, The Emperor’s Babe e Mr. Loverman, misturam pesquisa histórica e ficção para representar personagens negros muito distantes de estereótipos racistas. O primeiro conta a história de Zuleika, uma jovem de origem núbia nascida em Londres por volta de 140 d. c. que se casa com um romano rico e recebe duas escravas como presente de casamento. O segundo narra a vida de Barrington, um homem nascido em Antígua que vive em Londres e é casado com uma mulher religiosa, mas mantém um relacionamento amoroso com o melhor amigo.

Projeto literário

A consciência de que há muitas histórias de imigração, buscas por pertencimento e relações afetivas fora da heteronormatividade para serem contadas é um dos elementos que fazem Evaristo se desafiar constantemente a produzir narrativas que representem integrantes de minorias como pessoas com sonhos, dúvidas, medos e alegrias. No entanto, nem sempre editoras, crítica e leitores foram receptivos a essas histórias. Evaristo menciona a reescrita depois de conversas com editores, o empenho em divulgar os próprios livros mesmo trabalhando com uma editora respeitada e a necessidade de adotar uma forma de pensar e organizar sua rotina que a ajudou a não se comparar com outros escritores e a se manter fiel ao seu projeto literário.

Se por um lado Evaristo defende um compromisso com a escrita que influenciou várias de suas escolhas — morar em apartamentos com aluguel barato, ter empregos temporários, trabalhar durante a madrugada para não ser interrompida —, por outro também conta como buscou diferentes formas de garantir um pouco de estabilidade e conforto no dia a dia. Foram muitas as decisões tomadas para que pudesse se empenhar em seu objetivo de se dedicar à literatura — até mesmo a adoção de fórmulas de encorajamento para não desanimar com as baixas vendas de seus primeiros livros.

Evaristo fala ainda sobre alguns de seus amores, pessoas que a estimularam a viajar, ler e escrever, e também sobre homens que se relacionavam com ela em segredo ou que fingiam ter lido seus livros para impressioná-la. Em uma fase da vida em que passou a procurar por companheirismo e liberdade, a escritora conheceu seu marido de forma surpreendente, em um site de relacionamentos. Ao refletir sobre os efeitos da vida afetiva em sua criatividade, ela recorda uma relação abusiva que manteve com uma mulher mais velha por cinco anos e fala sobre como esse namoro minou sua confiança, dificultou sua produção e serviu como um aprendizado do que não deveria se repetir.

A forma como Evaristo reivindica sua individualidade e sua humanidade em suas memórias está no tom bem-humorado que permeia o livro, pontuado por uma autocrítica acompanhada de comentários sobre a possibilidade de mudar de ideia e de atitude. Parte da capacidade de nunca desistir consiste em aprender como se reinventar e continuar fiel a seus valores e princípios. A escritora também conta como passou a usar a credibilidade conquistada em sua carreira para apoiar iniciativas que estimulam mais diversidade no mercado editorial britânico. Ela propôs prêmios literários para poetas africanos e afrodescendentes, dá aulas na Universidade Brunel e participa de curadorias editoriais para a recuperação de obras de autores negros britânicos fora de catálogo e a publicação de novos autores.

Manifesto é uma leitura saborosa que estimula escritores a se arriscarem criativamente e também um testemunho poderoso que combate ideias etaristas. Com leveza e convicção, Bernardine Evaristo mostra como a maturidade pode ser um período de realizações e conquistas, especialmente para mulheres dispostas a se manterem ativas, curiosas e desobedientes.

Quem escreveu esse texto

Stephanie Borges

Jornalista, ganhou o prêmio Cepe de poesia com Talvez precisemos de um nome pra isso (no prelo).

Matéria publicada na edição impressa #63 em outubro de 2022.