Jornalismo,
Lembranças libertas
Jornalista reconstrói sequestro de diplomata brasileiro nos anos 70 e a mobilização social que o salvou
07nov2022 | Edição #64O dia era 30 de julho de 1970, quinta-feira. Eu tinha onze anos de idade e provavelmente estava curtindo os últimos dias de férias jogando bola na rua, narrando os gols como se eu fosse Jairzinho, o Furacão da Copa. O Brasil fora tricampeão mundial havia pouco mais de um mês, e os jogos foram televisionados pela primeira vez.
À noite, meus pais se reuniam em frente à tevê para acompanhar O Seu Repórter Esso na TV Tupi e o Jornal Nacional, na TV Globo. Não tenho uma memória prodigiosa, mas certamente naquela noite o noticiário girou em torno do sequestro do embaixador Aloysio Gomide, no Uruguai. E esse foi o destaque também dos meses seguintes. Aloysio Mares Dias Gomide permaneceu nas mãos dos tupamaros, grupo guerrilheiro uruguaio, por 205 dias. Seu nome foi tão repetido que acabou fixado nas minhas lembranças.
Um diplomata no cativeiro, de Ana Paula Alfano, é um thriller cheio de aventuras e reviravoltas, embalado por uma história de amor
Agora, acaba de sair o livro Um diplomata no cativeiro, de Ana Paula Alfano, pela Bella Editora. Eu o abri despretensiosamente e só larguei quando cheguei à última página. Um thriller cheio de aventuras e reviravoltas, embalado por uma história de amor. O episódio chocou o Brasil. Foi uma época em que as organizações de esquerda acreditavam que iriam mudar o mundo por meio de ações violentas, e que o povo entenderia seus atos e daria todo o apoio. Afinal, estavam se sacrificando “em nome do proletariado”. Brasil, Uruguai e outras nações latino-americanas viviam sob o jugo de governos militares autoritários. Os partidos e as organizações, colocados na clandestinidade, agiam nas sombras e visavam à tomada do poder. No Brasil havia diversos partidos de esquerda que pregavam e praticavam a luta armada. O jornalista Fernando Gabeira fez parte de um deles, o MR-8, Movimento Revolucionário 8 de Outubro. Preso pelos militares, Gabeira mais tarde foi libertado em troca da vida do embaixador americano Charles Elbrick. No Uruguai, a organização mais atuante era o MNL-T, Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros.
Aloysio Gomide era cônsul brasileiro no país e vivia com a família em Montevidéu. Até aquele dia, não passava por sua cabeça que pudesse ser alvo de uma ação tão violenta, que marcaria para sempre sua vida e a de sua família. Em uma manhã como qualquer outra, foi levado de casa cedo, ainda de pijamas e sem os óculos, dos quais era totalmente dependente.
Mesmo no distante subúrbio carioca da Vila da Penha o sequestro era assunto no noticiário
Sua mulher, Maria Apparecida Gomide, ficou em desatino. Como seguir a vida com seus seis filhos, sendo um ainda de colo? Formavam um casal inseparável e muito religioso. Talvez nem a própria Apparecida soubesse da força que tinha e do que seria capaz de fazer para preservar a vida do marido e restaurar a harmonia familiar.
Ao contrário do governo brasileiro, o uruguaio, sob o comando do presidente Jorge Pacheco Areco, não negociava com os guerrilheiros. Era irredutível.
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O mln-t era formado basicamente por estudantes universitários. Naquele período, ele iniciou uma ação ostensiva, sequestrando no mesmo dia quatro pessoas. Duas conseguiram fugir. As outras duas foram levadas no mesmo carro e por um período dividiram cativeiro. Eram elas o diplomata brasileiro e o americano Daniel Mitrione, agente do FBI que estava no país para colaborar com os órgãos de repressão, ensinando, entre outras coisas, técnicas de tortura. A ditadura uruguaia tinha em seu poder mais de cem militantes tupamaros. O objetivo dos sequestros: obter a libertação de seus membros. As ações eram meticulosamente preparadas, suas vítimas ficavam em completo isolamento, sem ideia de tempo ou espaço. A comunicação do grupo com familiares era cuidadosa para evitar rastreios. E a qualquer momento os sequestrados poderiam ser eliminados.
A tensão entre os familiares cresceu quando o agente americano foi assassinado. Gomide passou a ter certeza de que seria a próxima vítima, pois eles deixaram vazar a informação para o cativeiro. Só que sua mulher, Apparecida, havia iniciado uma saga incansável para tirar o marido das mãos dos terroristas.
Cartas e diários
E como ficamos sabendo de tudo isso? Ana Paula Alfano fez uma exaustiva pesquisa dos fatos. Entrevistou os sete filhos do casal — a caçula foi concebida após a libertação —, parentes, amigos envolvidos e o advogado que intermediou as negociações com o grupo. Contou ainda com recortes de jornais e revistas da época, além de um tesouro: as cartas que o cônsul enviou para sua mulher e os dois diários escritos por Aloysio e Apparecida, um mês depois de sua soltura. Os dois reproduziram suas rotinas durante o período tenebroso com requintes de detalhes que dão total veracidade ao relato. E a autora consegue imprimir o clima de suspense que não nos deixa largar o livro. Ao mesmo tempo, tempera com doçura a bela história de amor do casal.
Durante décadas, esses diários foram mantidos fechados e inacessíveis. Após a morte do casal — Aloysio partiu em 2015, Apparecida em 2019 —, os filhos decidiram trazer à luz esse momento sombrio da história da família e do país. Fizeram muito bem.
Como era criança na época, à medida que eu lia, alguns fatos se reavivaram nas minhas lembranças. Mesmo lá, no distante subúrbio carioca da Vila da Penha, o sequestro era assunto no noticiário.
Só o Amor Constrói
Também teve grande impacto a campanha liderada por Apparecida para arrecadar o dinheiro do resgate de Aloysio Gomide. A incansável mulher correu os programas de tevê mais populares do país e pediu ao Brasil, que se mobilizou para ajudar a levantar os fundos necessários. Passou pelo auditório dos programas de Flávio Cavalcanti, Chacrinha, Cidinha Campos, para citar alguns. Populares e famosos, como Pelé, fizeram doações, taxistas deixaram de cobrar corridas. Tudo para que Apparecida, que se tornou celebridade muito antes de essa palavra se banalizar, conseguisse recuperar seu marido das mãos dos guerrilheiros.
O Brasil se envolveu, mesmo sem a existência de qualquer prenúncio de redes sociais, numa grande corrente. Todo mundo queria fazer parte, de alguma forma, daquela história de amor.
O final feliz foi um alívio nacional. Em seus últimos capítulos, Ana Paula menciona o nome dessa incrível campanha — Só o Amor Constrói. Tirado do contexto, parece cafona e piegas, mas não era esse o sentimento na época. Lembrei-me de uma canção com esse nome, que não sei se embalou a campanha ou se foi inspirada nela — o livro, que ainda pode ser saboreado apesar dos spoilers revelados aqui, não a menciona.
Matéria publicada na edição impressa #64 em outubro de 2022.
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