Jornalismo, Música,

Docemente desaforado

Coletânea de textos de Luiz Carlos Maciel mostra como o jornalista d’‘O Pasquim’ narrou a contracultura brasileira

13out2022 | Edição #64

Em 2016, um ano antes de sua morte, Luiz Carlos Maciel concedeu uma entrevista ao canal do Sesc no YouTube em que analisava a própria trajetória. Lá pelas tantas, quando a conversa recaiu sobre os caminhos tortuosos do passado e das escolhas feitas na juventude, o escritor emendou: “Não sei por que escrevo. Comecei aos quatorze anos, no colégio. Fazia a redação e gostava. Era sempre uma página e meia. Fiquei viciado nisto: escrever pouco. Não consigo escrever muito sobre absolutamente nada”.

A citação ajuda a explicar a dinâmica de alguém cuja verve criativa sempre encontrou espaço na temática ampla e no espaço reduzido. A expressão serena e a voz pausada escondiam muito. “O primeiro que lhe escreve é Maciel, o que equivale a dizer a calma na aparência e a angústia na essência”, disse ele em uma carta coletiva de cineastas endereçada a Glauber Rocha em abril de 1964, logo após o golpe militar, quando o diretor baiano estava em Cannes apresentando seu Deus e o diabo na terra do sol.

Angustiado, sim, porque Maciel quis saber e conectar tudo. Como escreveu o amigo Jorge Mautner no prefácio de um dos seus livros, ele “vivia com seus neurônios em constantes explosões termonucleares de sinapses e influência dos pensadores de todo o mundo. Todos eles sugados e reinterpretados por um dom especial de alguém que, além de filósofo, militante e artista, representa a gema do ovo do Brasil universal”.

Maciel foi impregnado de uma porção de assuntos ao longo da vida. Despejou todos eles com uma pitada de Brasil, abusando da antropofagia elaborada pelo modernista Oswald de Andrade, que serviu de esteio para artistas brasileiros variados na década de 60. “Tudo aquilo que sacudiu o mundo nas décadas de 60 e 70 foi intensamente analisado por ele, preconizado por ele, que sempre expôs essa visão com efervescente e latejante força vital”, escreveu Mautner.

Essa efervescência intelectual foi reunida e organizada pelo jornalista Claudio Leal em Underground, volume que reúne textos de Maciel publicados na imprensa entre 1959 e 2018. Boa parte dos escritos agora publicados foi produzida no período em que o filósofo, escritor, jornalista e roteirista comandou a coluna de mesmo nome n’O Pasquim, periódico que revolucionou a imprensa brasileira em meio à ditadura militar.

No prefácio, Caetano Veloso dá o tom da estirpe desse autor “docemente desaforado”. Foi a convite de Maciel que o baiano, exilado em Londres, começou a escrever também n’O Pasquim, no início dos anos 70. Alguém que esteve com Glauber Rocha antes dos primeiros suspiros do Cinema Novo, que influenciou os tropicalistas quando eles ainda estavam na Escola de Teatro da Universidade da Bahia e que se tornou a “voz dissonante no mundo ipanêmico”, como define Caetano. Este é Maciel.

Sem roteiro

Seu pensamento — engenhoso, múltiplo — não tinha roteiro, e o livro organizado por Claudio Leal deixa isso evidente. Em uma página, é possível ler sobre a necessidade do triunfo de uma revolução sexual cuja premissa seja a liberdade de pessoas “inteiramente livres de preconceitos”. Mais adiante, uma análise sobre a obra do alemão Bertolt Brecht e os pontos de contato com aquilo que Zé Celso propunha em seu Teatro Oficina. Em seguida, uma análise sobre o ocaso do pensamento liberal da juventude norte-americana pós-Guerra do Vietnã.

Esse arsenal de temas se soma a autores até então desconhecidos no Brasil, mesmo entre os que propagavam alguma intelectualidade. Alan Watts e seu zen-budismo, a descoberta do LSD e as experiências psicodélicas descritas por nomes como Timothy Leary e Ken Kesey, sem esquecer do diálogo proposto com escritores como Norman Mailer, Hermann Hesse, Carlos Castaneda e Martin Heidegger. Os precursores de tudo, Jean-Paul Sartre e Karl Marx, também nunca saíram de cena. Ao contrário: foram sempre reinterpretados à luz das novas leituras e experiências. Hippies, beatniks, Tropicália.

Maciel foi impregnado por uma porção de assuntos; despejou todos eles com uma pitada de Brasil

No caldeirão do ideário da contracultura que sustentava discussões filosóficas e a maneira de agir mundo afora, com atenção especial aos Estados Unidos, Maciel era sempre a favor de colocar o que estivesse à mesa. Seus textos discorriam sobre Bob Dylan e Gilberto Gil ao mesmo tempo, sem esquecer do jazz de Duke Ellington e do rock de Jim Morrison. Da exuberância de Marilyn Monroe ao feminismo praticado por Yoko Ono. Nada escapava às antenas desse tradutor dos novos tempos, quando gírias como bicho, careta e grilo precisavam ser explicadas. Não à toa, tornou-se o “guia informativo daqueles que se inclinavam para uma mudança radical de estar no mundo”, como descreveu Caetano.

Para além do conteúdo, é importante citar que a produção de Maciel, sobretudo n’O Pasquim, é feita em um momento no qual o jornalismo é apresentado de forma inovadora ao leitor. A premissa do próprio veículo liderado por Tarso de Castro e sua habilidade na “alquimia do humor gráfico, ensaio, crônica marota, grandes entrevistas e sotaque de Ipanema”, como define Claudio Leal, foram fundamentais para que Maciel pudesse narrar a contracultura tanto por meio da informação quanto por seu estilo gráfico, que reforçaram a irreverência, a inconsequência, a informalidade, a rebeldia e a quebra de qualquer padrão sobre as manifestações do “eu” no mundo. Eram as suas “porra-louquices”, segundo Tarso.

Maciel morreu em dezembro de 2017. Poucos meses depois, em março do ano seguinte, o site da revista Bravo! publicou um artigo intitulado “Memórias do futuro” — o texto faz parte da coletânea publicada pelo Sesc. Nele, o escritor transita pelas premissas de alguns dos seus autores preferidos para descrever nossa ausência de perspectiva futura enquanto sociedade. O passeio pelo próprio arsenal criativo é, no entanto, uma forma de sustentar a pergunta inicial do artigo, algo como uma provocação derradeira: “Hoje em dia não se fala mais em futuro, parece até que já chegamos lá […] Onde estão os visionários, os profetas, os videntes?”. Pois é, Maciel. Onde estão?

Quem escreveu esse texto

Guilherme Henrique

É jornalista.

Matéria publicada na edição impressa #64 em outubro de 2022.