Cinema, Jornalismo,

Uma testemunha de tempos loucos

O jovem repórter Billy Wilder exibe a verve que marcaria sua carreira de cineasta

23fev2023 | Edição #67

A plataforma de streaming Mubi incluiu recentemente em seu acervo o primeiro filme dirigido por Billy Wilder (1906-2002), uma produção francesa pouco lembrada, de 1934. A despeito do que sugere o título, Semente do mal é uma comédia, gênero do qual Wilder foi um mestre. Basta citar os dois filmes que fez com Marilyn Monroe, O pecado mora ao lado (1955) e Quanto mais quente melhor (1959). Quanto a Semente do Mal, é a história de um playboy que vira ladrão de carros. Apesar das marcas do tempo, permanecem o ritmo e o entusiasmo. Tanto o personagem quanto a verve são puro Wilder. Assim como os textos de Billy Wilder: um repórter em tempos loucos. São breves ensaios jornalísticos escritos pelo futuro cineasta entre 1925 e 1933, ano em que ele deixou Berlim para trás a caminho da França e depois dos Estados Unidos, fugindo do nazismo. Alguns anos depois, sua mãe, seu padrasto e sua avó seriam mortos pelo terror hitlerista.


Billy Wilder: um repórter em tempos loucos reúne breves ensaios jornalísticos escritos pelo futuro cineasta entre 1925 e 1933

Billy Wilder nasceu com o prenome Samuel, mas sua mãe, uma admiradora dos Estados Unidos, o apelidou de Billie — o “y” seria adotado na assinatura de seus filmes americanos. Contrariando o pai, que o queria advogado, Wilder foi jornalista na Viena de Karl Kraus e Sigmund Freud e na Berlim da República de Weimar. Para alguém que se dedicava sobretudo à cena mundana, não poderia haver melhores locações nem época mais propícia. Eram os anos do entreguerras, tempo de filas para comprar comida e noites esfuziantes — para quem podia pagar. Wilder conjugou os dois extremos quando foi dançarino de aluguel em Berlim. Com o estômago doendo de fome, ele vestia seu smoking ao chegar ao Eden Hotel e saía rodopiando com as parceiras da alta sociedade, entre “penteados que cheiravam a cabelo queimado”.

Depois de algum tempo, Wilder aprendeu a dançar. Não era o caso de suas parceiras: “A esposa do distinto investidor já tinha pisoteado todas as minhas fontes de renda durante o foxtrote”. E continuava a luta contra a fome: “Lá fora é inverno, amigos do Café Romanisches, todos gripados, estão debatendo simpatia e pobreza e, assim como eu ontem, não sabem onde vão passar a noite. Eu, no entanto, sou um dançarino. O grande e vasto mundo vai me abraçar.” E assim foi, como sabemos. Wilder foi indicado a 21 Oscars e ganhou seis.

Billy Wilder: um repórter em tempos loucos é dividido em três grupos de textos. O primeiro é intitulado “Extra! Extra! Matérias, artigos de opinião e reportagens especiais sobre a vida como ela é”. Em seguida vêm “Perfis de gente ordinária e extraordinária” e “Críticas de teatro e cinema”. O primeiro e mais longo texto do livro é sobre a experiência de dançarino de aluguel, em formato de diário. É um relato de diversão ocasional e exaustão permanente, uma oportunidade de testar-se.

Seguem-se, entre outras joias, duas pequenas odes às cafeterias de Viena e uma demonstração do lendário cinismo de Wilder no ensaio em que ele propõe que as crianças aprendam na escola a mentir, “com emprego de método científico”. A “arte dos pequenos ardis” seria o melhor caminho para poupar dissabores quando fossem obrigadas a se submeter ao imperativo da autopromoção na vida adulta — uma antecipação da abordagem do mundo do trabalho em Se meu apartamento falasse (1960). Em outra provocação, Wilder se insurge contra o uso da conjunção “mas”, segundo ele um empecilho à objetividade. O tom muda na crônica melancólica “Por que os fósforos não têm mais aquele cheiro?”, um dos pontos altos do livro. Em outra crônica, sobre a vida moderna e a era da velocidade, o jovem repórter testemunha a novidade dos voos noturnos saindo e chegando de Berlim.

Já perto do fim da primeira parte do livro surge o Billy Wilder cineasta. Mais precisamente, roteirista — ou um pouco mais do que isso. O filme era Gente no domingo (1930), um marco do realismo no cinema, que lança mão de expedientes que anos depois seriam encampados pelo neorrealismo e pelo cinema-verdade. O projeto do semidocumentário era acompanhar cinco homens escolhidos aleatoriamente em seu dia de folga em Berlim. Wilder esteve presente desde o início do processo, fazendo um levantamento dos pontos de encontro da cidade — descritos num dos textos do livro —, a seleção dos personagens reais e finalmente escrevendo o roteiro. O filme foi feito ao ar livre, longe dos estúdios — uma ousadia na época. A ideia era captar a realidade da forma mais direta possível.

A seleção de perfis que compõe a segunda parte do livro vai, de certa forma, na direção contrária à busca de realismo do filme quando descreve o mundo de fantasia das celebridades, como a superestrela Asta Nielsen e o príncipe de Gales. Na primeira das duas reportagens sobre o futuro rei da Inglaterra, além de observar que Eduardo 8º “cospe com maestria”, Wilder se atém apenas à elegância dos ternos do entrevistado. É a elegância ao vestir também o maior interesse do repórter quando entrevista o ator Adolphe Menjou. E, numa antecipação das técnicas do “novo jornalismo”, que só iria vicejar cerca de três décadas depois, Wilder descreve uma não entrevista com um ministro de Estado, do qual só vê as costas enquanto imagina o que passa por sua cabeça sisuda.

Ainda merecem dupla visita os perfilados Tiller Girls, uma trupe de dançarinas britânica que exerce particular fascínio sobre Wilder e, podemos apostar, foi sua inspiração para a orquestra de moças de Quanto mais quente melhor, e o band leader americano Paul Whiteman. Finalmente, Erich von Stroheim, o diretor genial, o “belo bobo de Hollywood”, que “há quinze anos, faz os estúdios quebrarem” e leva seis semanas para filmar um beijo. Num perfil sem entrevista, Wilder não esconde seu fascínio pelo cineasta, sentimento que se manteve — até chamou Stroheim para o papel de mordomo da estrela decadente Norma Desmond (Gloria Swanson) em Crepúsculo dos deuses (1950).

São os perfis de anônimos, contudo, os melhores momentos da segunda seção da coletânea — um deles, um personagem chamado apenas Erwin, tão anônimo que pode se passar por várias pessoas apenas mudando o penteado ou trocando de óculos. Desfilam ainda um palhaço, uma “bruxa” precursora das técnicas motivacionais, o elenco de um circo, a mulher mais velha de Berlim, um jogador de pôquer. A terceira parte de Billy Wilder: um repórter em tempos loucos tem interesse mais restrito por tratar de filmes perdidos no tempo, com a exceção de Ouro e maldição, dirigido por Stroheim, e que Wilder comenta sem maior entusiasmo.

Lembremos que o Wilder cineasta criou um impiedoso retrato do jornalismo sensacionalista em A montanha dos sete abutres (1951). O Wilder repórter foi o oposto do inescrupuloso protagonista do filme, vivido por Kirk Douglas. Não por ser sério, a seu modo, mas pela leveza. Ali já está o Wilder fiel a seu princípio: “nunca entedie o público”.

Quem escreveu esse texto

Márcio Ferrari

Matéria publicada na edição impressa #67 em fevereiro de 2023.