Jornalismo,

Um homem com compromissos

Biografia de Roberto Marinho escrita por Eugênio Bucci destrincha as alianças do ‘tycoon’ da imprensa brasileira com o poder e a ditadura

01jan2022 | Edição #53

Em 31 de agosto de 2013, O Globo amanheceu confessional. “Apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro”, dizia o título do editorial. A gazeta de Irineu Marinho fazia o mea-culpa sem, no entanto, ajoelhar no milho. Conforme o rol de desculpas, o golpe, apelidado de revolução, justificava-se “pelo temor de outro golpe, a ser desfechado pelo presidente João Goulart, com amplo apoio de sindicatos”.  

Mesmo com meio século de atraso a retratação saíra pela metade. Pelo menos é o que nos conta o jornalista Eugênio Bucci, no livro Roberto Marinho: um jornalista e seu boneco imaginário, publicado pela Companhia das Letras. Trata-se de um sólido perfil do tycoon da imprensa brasileira. O autor sabe das coisas. Com a mão firme, pinçara momentos cruciais da história de um homem que viveu “98 anos, oito meses, três dias, cinco horas e trinta minutos”, construindo um Roberto Marinho além do óbvio. 

Um dos pontos altos do livro são as páginas que situam o personagem nos fatos e nas versões que circundam o 31 de março de 1964. O Globo não estava sozinho no apoio aos militares. Em uníssono, a imprensa vendia o peixe da redentora revolução para salvar a democracia. Olhando em perspectiva, difícil acreditar nas boas intenções da mídia. Para quem estava armando o bote, para fundar no Brasil a “república sindicalista”, Jango desistiu bem fácil. Fosse como fosse, logo que começaram a pipocar as denúncias de tortura nos porões dos quartéis, os grandes jornais iniciaram o desembarque. O Correio da Manhã seria o primeiro, com um corajoso texto de Heitor Cony denunciando a barbárie que se iniciava. 

Roberto Marinho, porém, viu no regime a mão amiga para consolidar a nascente TV Globo, inaugurada em 26 de abril de 1965. O jogo de interesses era complexo. Por um lado, a Globo, para decolar, precisava pegar carona nas inovações tecnológicas promovidas pela Embratel. Por outro, os milicos estavam em busca da parceria perfeita para construir uma identidade nacional. Roberto Marinho se deu conta disso antes dos concorrentes, diz Bucci.

“A comunicação com o povo passava por criar uma identidade nacional unificada, que valesse tanto para os gaúchos como para os manauaras.” O regime “não cochilou”, espetando antenas parabólicas país afora. “Roberto Marinho sempre disse, e com razão, que nunca obteve outorgas de novas frequências dos militares.” Na verdade, conseguira algo melhor: os quartéis franquearam-lhe a tranquilidade para crescer sem limites.

Em troca, a Globo oferecia o espetáculo. “Na Copa do Mundo de 1970, quando a tortura grassava e as tropas de repressão política assassinavam gente indefesa e sumiam com os corpos, a televisão ajudou o ditador de turno, Emílio Garrastazu Médici, a ficar bem no vídeo, enquanto o escrete canarinho conquistava a taça Jules Rimet, no México.” Já vigorava o AI-5 e boa parte da imprensa se achava entre tapas e beijos com a ditadura. Até o Estadão, unha e carne com a UDN, o braço civil do golpe de 1964, “saiu batendo porta”, com o editorial “Instituições em frangalhos”, escrito pelo próprio Júlio de Mesquita Filho. 

Entre os achados do livro, está um levantamento realizado por José Elias Romão, em sua tese de doutorado na UnB. Romão exuma memorandos e despachos que traçam uma “radiografia hiper-realista da cumplicidade da Globo com o regime”. Em um despacho do dia 14 de março de 1978, o ministro das Comunicações, Euclides Quandt de Oliveira, estava receoso: “Reconheço que o Sr. Roberto Marinho tem dado permanente apoio ao governo. No entanto, creio que não se deve permitir a ampliação de sua rede devido ao perigo de vê-la atingir mais de 80% de índice nacional de audiência, o que representa virtual controle da opinião pública”. 

De playboy a rei da cocada

Roberto Pisani Marinho nasceu em 3 de dezembro de 1904, no Rio de Janeiro. O pai, Irineu Marinho, havia se feito sozinho, partindo de Niterói para se tornar dono do popular vespertino A Noite. Começara por baixo, como revisor do Diário de Notícias. Aos seis anos, o herdeiro fora matriculado num dos melhores colégios da cidade, o Paula de Freitas. Ali, tomaria uma espécie de lição fundadora. Ao levar uma surra de um garoto mais velho, “levantou outro”. Passados quinze anos, após muitos anos de dedicação aos esportes, devolveu a sova, ao encontrar, por acaso, o antigo agressor em Copacabana. “Um homem que não tem coragem não merece viver” era a sua frase de cabeceira.  

O livro de Bucci nos ajuda a compreender o tamanho de Roberto Marinho na história política do país 

Talvez um dos combustíveis do ego que ia se avantajando fosse o complexo de baixinho. Estacionou na marca de 1,64 metro e, segundo Bucci, nunca se conformou: “Assim como disfarçava a morenice com pó de arroz, encontrou um artifício que o fazia parecer menos baixo do que era: usava calçados especiais, com saltos disfarçados, embutidos na parte interna dos calcanhares”. Na juventude, parecia que não ia dar em nada. “Não tirou diploma e não chegou a cursar o que, na época, seria o correspondente ao ensino médio.” Chegou a se matricular num curso profissionalizante de mecânico, o que renderia, décadas depois, uma carta aberta ao ex-presidente Lula, na qual admitia publicamente que a prosperidade do pai o eximira de virar operário. 

Só aos 21 anos o bon vivant começou a mudar de rumo. Em 1925, traído pelos companheiros que o acompanharam quando se aventurara na fundação de um jornal, Irineu Marinho perdeu A Noite. O filho decidiu resolver as coisas à sua maneira. Com a ajuda de um primo, espancou um dos traidores, em plena luz do dia, no Largo do Machado. Pela primeira vez, Roberto Marinho virava manchete de jornal: “Tocaia sinistra”, dizia A Noite. O pai escolheu outra vingança. Nascia o vespertino O Globo, para esmagar a concorrência: “A nova redação foi montada em ritmo acelerado. Na primeira folha de pagamento, de 30 de junho de 1925, o nome de Roberto Marinho aparece em 28º lugar, com o cargo de repórter”. 

Daí em diante o jovem mudaria de tática, sem, no entanto, abandonar o estilo: “Antes de completar trinta anos, Roberto Marinho já havia se revelado um empresário sagaz em fazer e desfazer suas alianças políticas”, conta Bucci, ao repassar a tumultuosa relação com Getúlio Vargas. Entre os aliados de primeira hora, estava o enfant terrible Carlos Lacerda, o megafone da UDN. Em 1954, durante a feroz campanha para derrubar o presidente, Lacerda contara com o microfone aberto da Rádio Globo. Não custaria lembrar: o suicídio de Getúlio adiou o golpe militar em dez anos. Em 1964, lá estariam os mesmos generais, o mesmo Carlos Lacerda e certamente o mesmo Roberto Marinho. Após o estampido ecoar no Catete, aliás, a revolta popular que explodiu na cidade fora bater à sua porta: “Depois de incendiarem todas as caminhonetes estacionadas na calçada, os populares tentaram impedir o fechamento da porta de aço que protegia a entrada (do jornal O Globo)”. 

1 bilhão de dólares

O livro de Bucci nos ajuda a compreender o tamanho de Roberto Marinho na história política do país. Apesar de fazer questão do título de jornalista, jamais se contentara em ser um mero fiscal do poder. Disputou-o, sem trégua, usando o seu conglomerado de mídia para construir e desconstruir presidentes. Pragmático, não acreditava em balelas, tais como ideologia. Mesmo sendo tão solícito com a ditadura, adentrou fagueiro os anos da redemocratização. Em meados dos anos 80, quando os generais eram mandados de volta aos quartéis, tinha na conta bancária 1 bilhão de dólares. Ao ser questionado por Ulysses Guimarães do porquê de haver escolhido o baiano Antônio Carlos Magalhães para ministro das Comunicações, o então eleito Tancredo Neves deu a letra: “Olha, Ulysses, eu brigo com o papa, brigo com a Igreja Católica, brigo com o PMDB, eu só não brigo com o doutor Roberto”. 

Quem escreveu esse texto

Karla Monteiro

É autora da biografia Samuel Wainer: o homem que estava lá (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #53 em outubro de 2021.