Jornalismo,

Ascensões fascistas

Jornalista turca explica como países se perdem em múltiplos fascismos e oferece um jeito de buscarmos uma saída

22out2021 | Edição #51

Ece Temelkuran não tem medo do dicionário. Há quem tateie, no debate público, buscando sinônimos para se referir a ideologias autoritárias em países como os Estados Unidos, o Reino Unido, a Hungria — e o Brasil. Falam em populismo de direita, em extrema direita. Mas esses são termos domesticados, ela diz. Palavras que se esquivam de descrever de maneira direta o fenômeno político a que se referem. “É fascismo”, ela insiste, em uma entrevista por telefone.

Essa jornalista de 48 anos sabe do que fala. Ela cresceu e trabalhou na Turquia sob um governo autoritário que tem perseguido e silenciado dissidentes. Uma das vozes mais incisivas da imprensa turca, é autora de Como perder um país: os sete passos da democracia à ditadura (Temas e Debates), um assustador — e até mesmo profético — guia que destrincha passo a passo o processo de erosão da democracia. “O fascismo existe em diversas formas, e às vezes ele nos entretém, mas não deixa de ser fascismo.”

Temelkuran fala sobre esse tema no dia 23 de outubro no Folio, o principal festival literário de Portugal. 

O caso da Turquia, que Temelkuran conhece bem, serve como uma espécie de alerta para o restante do mundo. Enquanto outros países, como os Estados Unidos e o Brasil, tratavam do autoritarismo como um problema dos outros, a Turquia já tinha bebido do cálice fascista.

Temelkuran nasceu em Esmirna, na costa oeste, uma das cidades mais liberais do país. “Fui educada como um ser universal, em uma nação criada no início do século 20 no modelo da civilização ocidental”, diz. “Ouvi pela primeira vez a palavra ‘eco’ no anfiteatro grego de Éfeso.”

Ela conta como sua geração foi criada com valores cosmopolitas e a sensação de pertencer a uma cultura política aberta, inspirada na experiência do oeste europeu. Uma geração, afirma, educada para viver em um país que já não existe mais. Nas últimas décadas, sob o regime de Recep Tayyip Erdogan, a Turquia se afastou daqueles modelos e se afundou no autoritarismo, conta. Por essa razão pessoas como ela acabaram deixando o país. “Nós nos tornamos desnecessários.”

Formada em direito, Temelkuran começou sua carreira jornalística no diário histórico Cumhuriyet — cuja equipe acabou atrás das grades nestes últimos anos. Também trabalhou no Milliyet e no Habertürk. Foi demitida do último, diz, depois de criticar Erdogan.

Fenômeno

Temelkuran alerta para a análise fácil que culpa apenas Erdogan e seu partido, akp (Justiça e Desenvolvimento), por cercear a imprensa. Em sua interpretação, a deterioração da liberdade de expressão precedeu, e permitiu, a ascensão do regime autoritário. Como em outras partes do mundo, a Turquia passou por uma série de reformas neoliberais a partir dos anos 80. Empresários compraram veículos de imprensa, afastando-os da política. Jornalistas, ademais, foram proibidos de se sindicalizar. Como resultado, segundo Temelkuran, a imprensa gradualmente se tornou uma ferramenta das forças políticas. Foi nesse contexto que Erdogan chegou ao poder como primeiro-ministro, em 2003, e agravou a censura.

Isso aconteceu, primeiro, com a criação de uma euforia populista em que qualquer crítica ao governo era tratada como um ataque à democracia. Em seguida, Erdogan passou a pressionar os grandes veículos de imprensa, por exemplo, via impostos e concessões. “Como vocês sabem, por sua experiência com Jair Bolsonaro, esses líderes tomam essas decisões  porque podem”, diz. “Erdogan pôde fazer todas essas coisas porque não havia ninguém para impedi-lo”, afirma.

‘Já não votamos por algo, mas contra algo, o que mostra que perdemos a fé’

As analogias entre Turquia e outros países é central ao pensamento de Temelkuran, que transita entre o jornalismo e a ciência política. Ela cita também a Itália, outro lugar em que a população tratou líderes autoritários como divertidos loucos, aberrações incapazes de minar uma democracia sólida. “As pessoas pensam que isso não pode acontecer em sistemas maduros, mas pode. É por isso que eu quero ter essa conversa global”, diz a jornalista.

Um dos grandes culpados, para Temelkuran, é o sistema neoliberal, que “danificou o contrato fundamental da democracia”. Reformas como as vividas na Turquia acabaram afastando os governos da ideia de promover a justiça social, diz, criando “teatros de democracia”. “É por isso que, quando o fascismo aparece, as pessoas não reagem, porque já não se sentem conectadas à democracia”, afirma. O risco, portanto, não são os líderes, mas o sistema. “As pessoas podem pensar que, se retirarem Bolsonaro do poder, o problema estará resolvido, mas não estará”, Temelkuran comenta. “Haverá outro, talvez mais inteligente. Os americanos ainda são assombrados pelo fantasma de Donald Trump, mesmo após a sua saída.”

O caso da França também é revelador, Temelkuran afirma. O país derrotou Marine Le Pen e sua Frente Nacional em 2017. Mas agora, a um ano do próximo pleito presidencial, volta a preocupação com o crescimento de discursos autoritários. “O voto virou uma ferramenta para tentar evitar o pior. Já não votamos por algo, mas contra algo, o que mostra que perdemos a fé”, observa.

O cenário que Temelkuran descreve parece tão inevitável que se torna desalentador. Mas essa jornalista encontrou, nos últimos anos, razão para o otimismo. É o que ela conta em seu recém-publicado Unidos: 10 escolhas para um agora melhor (Temas e Debates). São recomendações para quem se assustou com a primeira obra dela e quer combater o autoritarismo.

Não se trata de esperança — Temelkuran odeia essa palavra. “É frágil demais para estes tempos. Ela não resolve a situação. Não estou oferecendo uma saída, mas um jeito de buscá-la.” A lição central é de que, já que o fascismo se alimenta da perda de fé da população, é necessário devolvê-la.

Ela também insiste que é preciso criar um pacto antiautoritarismo baseado em um “contrato moral”, rejeitando as políticas divisivas que hoje tanto fragmentam a oposição. Ou seja, é necessário estar juntos. “O que é irônico, já que escrevi esse livro durante a pandemia”, diz. Ou não tão irônico assim. Enquanto Temelkuran batia seu texto, movimentos sociais iam às ruas nos Estados Unidos, nos protestos do Black Lives Matter (vidas negras importam). Aconteceu também em Hong Kong. “O que estou propondo é revolucionário, no sentido de que não propõe a salvação individual. O que estou dizendo é que, sozinhos, não vamos vencer.”

Quem escreveu esse texto

Diogo Bercito

É jornalista e autor de Vou sumir quando a vela se apagar (Intrínseca).

Matéria publicada na edição impressa #51 em setembro de 2021.