Infantojuvenil,

Fábula pacifista

Publicado na década de 1930, o livro sobre o touro que gostava de flores foi vetado por Hitler e Franco

15nov2018 | Edição #10 abri.2018

A história de Ferdinando é a de um touro que irrita bandarilheiros, picadores, toureiro e líderes mundiais. O que ele faz para tirar todo mundo do sério? Fica sentado. É a história de um touro sentado. Mas, bem diferente da do guerreiro sioux que deu uma lição nos colonizadores vencendo uma sangrenta batalha, a história do nosso herói aqui é bem paz & amor.

Ferdinando era um touro esquisitão, que “gostava de ficar sentado, bem quietinho, cheirando as flores” enquanto os demais “viviam pulando e dando cabeçadas uns nos outros”. Um dia, por causa de um incidente com um ferrão de abelha, Ferdinando foi escolhido para as touradas de Madri, parará-tibum-bum (fica aqui a sugestão de trilha sonora para quando ler o livro com uma criança, cobrindo literatura infantil norte-americana e música brasileira numa virada de página: se não conhece a marchinha, dê um Google em Braguinha).

E o que acontece quando ele chega lá? Atenção, contém spoiler.

Na arena, cercado pela plateia, cheia de mulheres com flores no cabelo, Ferdinando dá aquilo que poderíamos chamar de um vexame: fica sentado, curtindo as notas florais. Os bandarilheiros — carregando estacas enfeitadas com fitas, para espetarem o touro e deixá-lo com raiva —, os picadores — com lanças compridas para espetar o touro e deixá-lo com mais raiva ainda — e o toureiro ficam desesperados. O final da história eu não conto.

Pacifismo

Lançado em meados da década de 1930, na bica da Guerra Civil Espanhola e da ascensão do nazismo, o touro tranquilão deixou o general Franco e Adolf Hitler bastante irritados — a ponto de banirem os livros de seus países. Por outro lado, a força do touro sentado atraiu a simpatia de líderes políticos como Gandhi e Franklin D. Roosevelt, que manifestaram sua admiração pelo livro.

Ferdinando é um conto pacifista lançado num momento em que o assunto precisava de uma força mesmo. Aos olhos de hoje, uma outra mensagem sobressai: Ferdinando é também um vanguardista da identidade de gênero. Um herói não machão, que nega o estereótipo, rejeita o que se espera dele. E é também uma fábula de aceitação de uma identidade (como tantas histórias infantis),

O touro Ferdinando foi escrito numa sentada (teria levado menos de uma hora!) pelo americano Munro Leaf como um presente para o ilustrador Robert Lawson. A história, já deu pra sacar, é riquíssima e enxuta. A leitura é fácil — as páginas têm a quantidade certa, parece medida no contador de palavras, para não deixar a peteca cair na hora de ler para a criança. E as ilustrações, em preto e branco, são matadoras — exigem um olhar a mais para que sejam totalmente aproveitadas.

Árvore de rolhas

E é nesse passeio pelos desenhos incríveis da história que você encontra o único defeito dessa edição (tão bem cuidada!) em português. O Ferdinando gostava de ficar na sombra de uma árvore específica para sentir o cheiro das flores: uma árvore de cuja casca se fazem as rolhas de vinho. 

Por isso, ao desenhar a árvore, Lawson fez rolhas como se fossem frutos, parecem maçãs na macieira, mas são rolhas no sobreiro. Acontece que no texto a árvore é chamada de carvalho. Errado não está — o sobreiro é uma árvore da família do carvalho (embora ninguém me chame de Camila porque esse é o nome da minha prima). 

Em inglês, é chamado de cork tree ou cork oak, o que explicaria a confusão. Embora em todos os fac-símiles que consegui ver de edições em inglês apareça cork tree. É uma escolha que leva a duas chances perdidas: a de aprender um novo nome de árvore, especialmente para a criança que está conhecendo o mundo e pode saber mais ou menos nomes de árvore, e a de fazer a ligação entre a história e a brincadeira da árvore carregada de rolhas de cortiça.

Fora isso, a edição é demais: ela reproduz fielmente o livro original, da década de 1930, no tamanho e na encadernação. Meu filho, de cinco anos, pegou o Ferdinando e disse: “Nossa, mãe, esse livro parece antigo”. Não precisa nem abrir o livro para perceber que ele é antigo. Mas é só depois de ler a história que dá o estalo — ele não poderia ser mais atual e deveria ser leitura recomendada para crianças e adultos de hoje. Troque a arena pelas redes sociais, e estamos todos diante da chance de escolher de que lado da história queremos estar: Ferdinando ou picador?

Quem escreveu esse texto

Heloisa Lupinacci

É editora do site Panelinha.

Matéria publicada na edição impressa #10 abri.2018 em junho de 2018.