Infantojuvenil,
Um dia de neve para o menino negro
Quase sessenta anos depois de sua publicação nos Estados Unidos, clássico ilustrado da literatura infantil chega ao Brasil
01dez2021 | Edição #52A palavra “negro” no título é proposital. Com ela iniciamos este texto para falar de como a literatura pode ser também, para além da fruição e apreciação artística, um veículo de representações fundamentais para as crianças. Nesta obra de Ezra Jack Keats, judeu de família pobre e origem polonesa que cresceu no Brooklyn, em Nova York, está impressa a delicadeza de um olhar atento e potente para a infância. A brincadeira de rua impulsionada pela neve, um dos fenômenos mais fascinantes da natureza, é revelada como uma situação urbana e cotidiana protagonizada por um personagem negro que, segundo a editora americana Scholastic, foi o primeiro afro-americano a estrelar um livro ilustrado colorido nos Estados Unidos — em 1962, quando o país vivia o auge dos Movimentos pelos Direitos Civis.
Keats já trabalhava com artes antes de pensar em ilustrar um livro para crianças. Em seu processo criativo, tinha o hábito de recortar fotos e deixá-las ao alcance dos olhos em seu ateliê. E foi exatamente isso que o inspirou: um artigo publicado na revista Life em 1940, em que um menino de aproximadamente quatro anos de idade aparecia brincando na neve. Em 1963, durante o discurso de recebimento da medalha Caldecott, o autor declarou que tudo naquele menino da foto o cativou: o rosto, a pose, até mesmo as roupas, e que por isso o recorte ficou em seu mural por mais de vinte anos, até que chegou o dia de colocar essa nova história (simples e prazerosa) no mundo.
Depois de uma noite de neve, o menino Peter vê pela janela que a cidade está coberta de gelo. Toma café, veste o casaco e corre para fora, brincando de pegadas que se transformam em sentidos de vaivém, pés para um lado e para o outro. Com novos movimentos, trilha o chão e, mais acima, cutuca com um graveto a árvore forrada de neve. Do encontro com os garotos mais velhos vem a guerrinha de bolas, até que ele segue a caminhada criando bonecos e anjos. No simbólico, finge ser alpinista e deixa a imaginação guiar suas hipóteses infantis, como a de que é possível guardar um punhado de gelo dentro do bolso para continuar brincando no dia seguinte.
Esse percurso que parece durar um dia é acompanhado de ternura. Quem já viu uma criança brincando na neve pode recordar esse sentir universal. Quem nunca viu tem ali a oportunidade de imaginar a situação. Com Peter o leitor entra nas brincadeiras e nas sutilezas da relação que ele estabelece com a natureza e com a sua mãe, a quem narra cada aventura vivida até a hora de dormir. Ainda há neve quando o dia recomeça, e Peter não tem dúvidas: chama o vizinho e corre para brincar mais uma vez, já sabendo que não há tempo a perder — é preciso aproveitar os ciclos da natureza e os presentes brincantes que ela traz.
Ilustrações vibrantes
Todos esses momentos em que o tempo aparece suspenso pelas ações do personagem, pois o foco está totalmente no menino e na natureza, são revelados em um texto econômico com ilustrações bem equilibradas: calmas, porém vibrantes. Para dar vida a Peter, Keats mesclou várias técnicas, como nanquim, colagem e carimbos. Outra curiosidade é que o garoto foi desenhado sem traços faciais, somente com os olhos, e tornou-se um personagem recorrente na obra do autor, retratando também em outros títulos a diversidade das crianças do Brooklyn, sempre através de suas brincadeiras, sentimentos e amizades.
Se no Brasil o autor é pouco conhecido e esta obra demorou sessenta anos para chegar aqui, no mundo a cena é outra: traduzido em mais de dez países, Um dia de neve é o título mais emprestado nos 126 anos de existência da Biblioteca Pública de Nova York, com quase meio milhão de saídas desde 1962 — mais do que Onde vivem os monstros (Maurice Sendak) e Harry Potter e a pedra filosofal (J. K. Rowling).
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Não há dúvidas, portanto, de que uma obra importante como esta deve circular nas mãos de nossas crianças para que, enfim, através da literatura possamos romper com os estereótipos e preconceitos. E é por isso, também, que a publicação de Um dia de neve deve ser celebrada. Sem contar o ótimo texto e as ilustrações, a edição cuidadosa, o projeto gráfico em capa dura e as oito páginas finais com conteúdo histórico, o livro protagonizado por Peter em uma situação natural da infância impacta e reafirma o poder e a necessidade das histórias que contribuem para que, além da apreciação, se façam mais reflexões e ações.
Esse texto foi realizado com o apoio do Itaú Social.
Matéria publicada na edição impressa #52 em outubro de 2021.
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