Infantojuvenil,

A coragem de amar

Autor português celebra o enlace das almas em um pequeno livro sobre o relacionamento amoroso de pessoas mais velhas

01dez2021

Hoje conhecemos pouco o amor. Não nos enganemos; o audiovisual fala de amor o tempo todo, mas na verdade o que ele expõe é a paixão, o desejo sexual. Daí, por sinal, que o amor dos velhos pareça estranho, sobretudo quando eles perderam a beleza, o viço da juventude. Ora, o que Valter Hugo Mãe celebra, em Serei sempre o teu abrigo, é o amor do avô e da avó. A história roça o impossível — começa dizendo que a avó substituiu o coração de verdade por um “electrodoméstico”, como se escreve em Portugal — e contrasta a afetividade explícita, quase exuberante, dessa avó que ele não nomeia com o caráter mais maquinal, mais frio aparentemente, do avô, cujo nome também não nos dá.

O amor evidente da avó soma-se ao amor calado do avô neste livro que lembra o realismo mágico

E vão surgindo revelações durante este pequeno livro, como quando o autor descobre que o avô mal enxerga, que para ele não há dias, apenas matizes de noite. (Talvez por isso goste tanto dos cães, que mais cheiram do que enxergam.)

Ao amor da avó, evidente desde a primeira página, vai-se somando o amor calado ou discreto do avô, neste livro que lembra o realismo mágico, pois as árvores, por exemplo, quando o casal muda de casa, na calada da noite também se transplantam, para cercar a nova morada, quem sabe protegê-la. O carinho do avô vai se evidenciando, como quando procura suprimir qualquer ruído que perturbe a esposa de coração substituído. Amar é abrigar.

Como em todo realismo mágico, que no caso convém admiravelmente às crianças, que ainda pensam mais com o coração do que com a razão (e quem dirá que não têm razão?), ficam dúvidas pelo caminho. Maior de todas, por que o autor dedica o livro à mãe e ao pai, e não aos próprios avós que, como eu disse, ficam sem nome, embora sejam os heróis da história? Passou-me por um instante fugaz a suspeita de que a avó do livro fosse a mãe do autor, cujo peito foi aberto e o coração, talvez, substituído. Mas não importa: o que o livro faz é celebrar o amor, o amor dos mais velhos, de quem diz que são heróis, por tudo o que passaram sem perder a capacidade de amar.

Educação sentimental

O amor dos velhos, a avó que revela o amor ao neto, que por sua vez apenas tardiamente percebe o amor do avô sorumbático: tudo isso vai meio a contrapelo do que geralmente imaginamos ser o amor. Afirmei, no começo, que se fala muito de amor, mas pouco se diz sobre ele. Na verdade, tenho notado que é mais fácil a educação sexual — absolutamente necessária, friso — do que a educação para o amor, a educação sentimental, como dizia Flaubert. Entendemos mais facilmente a atração dos corpos do que o enlace das almas. E, no entanto, é esse casamento espiritual o que há de mais importante na vida, o que dura. Daí que Valter Hugo Mãe fale em coragem do amor e termine o livro nos exortando a entrar, de pés juntos, no peito aberto de quem nos ama, de quem amamos. Sim, é preciso coragem para amar.

Dou um exemplo muito simples, que não está à altura do autor, mas dou-o assim mesmo. Muitas pessoas temem declarar amor a outra, com medo de ser zombadas. Há um substrato em nossa cultura segundo o qual confessar amor é colocar-se numa posição de fragilidade. E é mesmo. Quem ama se posiciona à mercê da pessoa amada, lhe entrega a chave de sua felicidade. Mas, paradoxo ou não, para se entregar ao arbítrio de quem você ama, você necessita de valentia. Precisa ser um “bravo”, como diz Valter Hugo. Só quem se mostra frágil tem a coragem de amar e viver.

Este é um pequeno livro, fartamente ilustrado pelo próprio autor, de educação sentimental. Seja a avó, seja a mãe operada, os mais velhos ensinaram o narrador a amar. Fizeram que descobrisse, em seu próprio peito, a coragem para viver neste mundo.

Serei sempre o teu abrigo foi escolhido como o melhor livro infantojuvenil do ano pelos colaboradores da Quatro Cinco Um, mas tem o que ensinar tanto às crianças quanto aos adultos. Aquelas se deliciarão com a imaginação do autor, estes aprenderão (nunca é tarde para isso) duas ou três coisas importantes para o amor. Pelo menos duas ou três coisas, talvez mais, mas decisivas. 

Esse texto foi realizado com o apoio do Itaú Social.

Quem escreveu esse texto

Renato Janine Ribeiro

Professor titular da USP, é autor de A sociedade contra o social (Companhia das Letras).