Infantojuvenil,

A de aviadora, Z de zoóloga

Janaina Tokitaka monta um abecedário de mulheres bem-sucedidas nas mais diferentes profissões

01maio2019 | Edição #22 mai.2019

ABCDelas conta histórias de 26 mulheres, organizadas em ordem alfabética por suas profissões. Aviadora, bióloga, chef de cozinha, desenhista, escritora, fghijklmnopqrstuvwxy, zoóloga.

Os acontecimentos recentes me fizeram pensar: entre o livro ser escrito e eu ter a oportunidade de lê-lo,  o mundo já tinha dado tantas voltas que a letra C (dedicada à delicadíssima história da chef de cozinha Eugénie Brazier) poderia, em um hipotético segundo volume, retratar a cientista da computação Katie Bouman — que, ao traduzir em imagem os dados de radiotelescópios espalhados ao redor do globo, ajudou a gerar a primeira foto de um buraco negro. 

(Parêntese para contar a história da chef: primeira mulher a ganhar três estrelas Michelin e primeira pessoa a ganhar seis estrelas do guia, Eugénie é retratada preparando uma prosaica sopa de legumes no dia da visita de uma atriz famosa a seu restaurante. Todos ficam apreensivos com a escolha. A história segue assim:  “A atriz pegou uma colher para provar a sopa. Eugénie a impediu. Ela cortou uma fatia de pão de casca grossa e a colocou dentro do prato da convidada.

— Pronto. É assim que mamãe fazia.

A atriz comeu um pedaço do pão encharcado de sopa. Seus olhos se arregalaram.

— É a melhor coisa que eu já comi na vida!

Eugénie riu, feliz.

— Eu sei!

E as duas começaram a conversar, como velhas amigas, sobre comida e sobre a vida”.)

E ao sentar para escrever esta resenha, já tinha dado tempo de a descoberta histórica da cientista americana ser ofuscada por uma campanha difamatória que, fermentada nos recônditos extremistas da internet, questionava seus méritos.

Achei então que talvez uma escolha mais divertida fosse ela estar na letra B (que a obra dedica à poética história da bióloga Margaret Fountaine). É que na letra W, ABCDelas nos apresenta a inventora do wi-fi. E o K é dedicado a “Kung-fu, instrutora de”. No tal segundo volume, portanto, o B poderia contar a história da fotógrafa do buraco negro (ou “buraco negro, fotógrafa do”).

Não faltam letras no alfabeto nem acontecimentos ao longo do tempo para costurar essa nova memória em que heroínas aparecem cada vez mais no repertório de fábulas para crianças — sejam elas trazidas por livros infantis ou por notícias de jornal.

(Parêntese breve para a história da bióloga da letra B: oprimida em sua infância e juventude, liberta uma borboleta recém-saída de um casulo para voar para fora de seu aquário como ela mesma voou para longe de um lar opressor, num episódio que talvez não seja assim a mais pura verdade-verdadeira, mas que joga luz poética na importância da conquista da independência e da liberdade para perseguir uma carreira.)

Onda editorial

Livro mais recente de Janaina Tokitaka, ABCDelas é uma bem-vinda chegada à prateleira de biografias de mulheres para crianças. Autora prolífica (são quarenta títulos no currículo), ela constrói um recorte singular tanto na seleção (predominam cientistas, inventoras e profissionais criativas) quanto no estilo da narrativa. Informações objetivas e dados biográficos, como os que se encontram na Wikipédia, aparecem em três, quatro ou cinco linhas no começo de cada perfil. A partir daí, a autora passa uma linha pontilhada e nos delicia com o pedaço de uma história de cada mulher, como a anedota de Eugénie Brazier ou a fábula de Margaret Fountaine. 

A filósofa debochando do colega machista, a desenhista comemorando sua velhice, a escritora inventando sua escola, a geóloga assistindo à discussão de suas alunas, a investigadora conquistando um emprego. Cada história pode quase parecer um causo qualquer, mas todas retratam um ponto de virada de suas protagonistas.

Talvez por ser ilustradora de origem, Tokitaka se aproxima de cada personagem com uma mistura de olhar prosaico, um quê de crônica e verve poética, mas com objetivo muito claro: iluminar este momento da conquista ou do reconhecimento da independência. 

Tudo muito bonito, mas mais um livro com histórias de mulheres para crianças? Pode pensar o leitor que já correu os olhos por Histórias de ninar para garotas rebeldes, Grandes mulheres que fizeram história, Grandes mulheres que mudaram o mundo (todos da V&R), Extraordinárias: mulheres que mudaram o Brasil (Seguinte), Mulheres incríveis (Astral Cultural). Pois é: mais um, e que venham outros. E quem bufar que leia todos, para ver com os próprios olhos o quanto eram urgentes. A Katie aí de cima, por exemplo, já tem lugar reservado no próximo lançamento.

E se você já se deparou com os cem perfis de Histórias de ninar para garotas rebeldes e estiver pensando que as 26 histórias de Tokitaka vão estar contempladas ali, engana-se: há apenas uma coincidência, a oceanógrafa Silvia Earle. E também uma conexão: a relação de amizade entre a enfermeira Florence Nightingale, retratada em Histórias de ninar, e a médica Elizabeth Blackwell, de ABCDelas. Juntas, as duas fundaram uma escola de medicina e enfermagem.  

Quem escreveu esse texto

Heloisa Lupinacci

É editora do site Panelinha.

Matéria publicada na edição impressa #22 mai.2019 em abril de 2019.