Ciências Sociais,
Maquiavel e a política brasileira
De todos os pensadores que se ocuparam do poder, só o florentino fornece os instrumentos capazes de explicar a atual conjuntura
13nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18De todos os filósofos que já se ocuparam da política, o melhor para analisar a atualidade é Maquiavel. Essa é minha convicção, a de Aldo Fornazieri e de mais gente. É claro que outros pensadores ajudam a entender o macro: Hobbes é ótimo para pensar a soberania, Locke para o liberalismo, Rousseau para o que há de péssimo e o que pode haver de bom na sociedade política, Marx para o capitalismo. Mas todos eles lidam com canhões gigantescos. A política cotidiana é uma conversa de moscas: canhões gastam demais para atirar nelas, e por sinal não as acertam. Só Maquiavel permite uma sintonia fina da disputa política.
Exemplo: no Dezoito brumário, sua melhor apreciação de uma situação concreta, Marx diz, se referindo ao Parlamento francês, que quando se passa às palavras é sinal de que se está fraco. Ora, as palavras são justamente o elemento por excelência da democracia. Marx não aceita isso. Para ele, todos os partidos, a despeito de suas diferenças, desde os monarquistas até os republicanos, são inúteis e quase desprezíveis. Por isso, para o estudo da 2ª República francesa, que durou de 1848 a 1851, prefiro o livro de Maurice Agulhon, Mariana ou o aprendizado da República, para quem nesse breve período a República forjou a imagem positiva que, daí a vinte anos, garantiria sua implantação mais duradoura no país.
Mas como é que Maquiavel nos faz entender os tempos atuais? Não é paradoxal utilizar O príncipe para pensar a modernidade democrática, em que o poder se confere por eleições e não mais pelo sangue? É, sim. Mas prestemos atenção em dois pontos. Primeiro: Maquiavel é um dos raros filósofos a discutir a tomada do poder. A grande maioria, excetuando Marx, debate como se constitui ou como se deve exercer o poder. Maquiavel, interessado em dizer “coisa que preste”, pergunta como se mantém o poder recém-conquistado. Segundo: por isso mesmo, ele lida em seu livro com príncipes novos, sem se interessar por aqueles cuja família detém o poder há tanto tempo que não se questiona sua legitimidade. Ora, na democracia, todo governante é novo. Eleições para a direção do Estado significam que não há dinastias ou legitimidade hereditária. Assim, todo governante atual “conquista” o poder, é verdade que pelo voto, e mantém-se nele graças à opinião dos cidadãos. Há diferenças, é óbvio, mas as perguntas estão mais próximas de Maquiavel do que de qualquer outro filósofo.
O político se move em terreno ensaboado. Metade de suas ações ele controla pela ‘virtù’, metade depende da fortuna
Aí entra em cena um célebre par de conceitos, cunhado por nosso autor: virtù e fortuna. Se as antigas traduções em português vertiam a primeira palavra como virtude ou valor, a regra hoje é manter o original italiano, para não se confundir a virtude cristã, religiosa, moral, com a virtù como capacidade do verdadeiro “vir” (varão, em latim) de vencer os obstáculos. Na época, eles estavam na guerra, hoje nas eleições. Mas na época de Maquiavel também eles não se esgotavam na tomada do poder pelas armas. Esse era apenas o começo. Era preciso também ter e manter a opinião favorável dos súditos — como hoje, em relação aos cidadãos.
Já a fortuna é mais autoexplicativa. É o que podemos chamar de sorte, azar, acaso. É impossível de se antever, de se conhecer. O político se move em terreno ensaboado. Metade de suas ações ele controla pela virtù, metade depende da fortuna. Ele deve se esforçar ao máximo por controlá-las. As páginas de Maquiavel sobre César Borgia são brilhantes. Diz que o filho do papa Alexandre Borgia fez o que pôde para garantir sua sobrevivência política após a morte do pai. Mas não pôde prever que vários infortúnios se abateriam sobre ele ao mesmo tempo. Fez tudo o que podia com a virtù, diz Maquiavel. Mas se corrige: não, não fez tudo. Não podendo fazer do papa um amigo seu, deveria pelo menos impedir a ascensão de um inimigo. Não o fez, e assim causou sua própria ruína. Essa passagem é chave: as fronteiras entre virtù e fortuna são oscilantes. César Borgia deu mostra de máxima virtù — não, não deu.
Impetuoso ou cauteloso?
Como lidar com esse mundo tão imprevisível? Entra aqui outro par de conceitos. O príncipe, dependendo das circunstâncias, ora deve ser impetuoso, ora cauteloso. Mas cada estilo de ação depende de um modo de ser. O príncipe que soubesse quando agir com ímpeto, quando aguardar que as coisas melhorem, seria “prudente”. Essa é a palavra decisiva, mas às vezes as traduções confundem cauteloso com prudente. Errado. A prudência tem duas formas: cautela e arrojo. Prudência é sabedoria: um conhecimento não teórico, mas prático, de como agir. Prudente é quem sabe quando atacar de frente, dos lados ou, mesmo, ficar numa inação inteligente.
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Maquiavel mostra leve preferência pelo arrojo (“a fortuna é mulher e favorece os impetuosos”), mas nem sempre. Vejam o filme Kagemusha (1980), de Akira Kurosawa: no Japão do século 16, um general agonizante faz contratar um sósia, mandando que durante três anos após sua morte seu substituto não lance nenhum ataque. “Seja como a montanha, que não se move: quem a ataca destrói a si próprio.” Seu filho, esbulhado da herança, espera passarem os três anos — e, aí, ataca; e, aí, perde tudo. Os tempos eram de cautela, como previra o velho general.
Aqui está o grande problema. Por maior que seja a virtù, ela nunca é infalível. O príncipe, por sábio que seja, nunca (ou quase nunca) terá a plasticidade necessária para ora ser arrojado, ora cauteloso. Cada um tem seu modo de ser. Há dois modos de ser irredutíveis, insuperáveis: o arrojo e a cautela. Por isso, nunca um príncipe estará seguro.
Penso que Maquiavel retoma, sem o saber, Édipo rei. O personagem de Sófocles é um solucionador de problemas. Ganha o trono de Tebas resolvendo o enigma da esfinge, que assolava o reino. Esse enigma (qual ser de manhã tem quatro pernas, ao meio-dia, duas, e à noite, três?) é o mais difícil de todos: a resposta é “o homem”, que engatinha, depois anda sobre duas pernas e na velhice usa uma bengala. Édipo sabe o que é ser humano e salva o reino.
Mas, muito mais tarde, uma peste castiga Tebas, e o rei-príncipe decide investigar por quê. A cada etapa, os que o cercam intuem a verdade horrível (que ele matou o pai e desposou a mãe) e tentam fazê-lo parar. Primeiro, o pastor que devia tê-lo matado na infância, depois, o adivinho que sabe da história, finalmente, a própria esposa. Ele se recusa a parar, até que a verdade terrível se revela a todos e destrói sua família, ele incluído. O coro encerra a peça, dizendo a moral da história: ninguém pode ser dito feliz, ou infeliz, até sua vida terminar; Édipo, tão poderoso, caiu abaixo de todos.
São pontos preciosos que valem para Édipo e para O príncipe. Os dois só fazem sentido lutando pela conquista ou conservação do poder. E nenhum dos dois tem garantido o resultado final. Ao contrário dos teóricos medievais da política, que prometiam que o rex justus, o rei bom, isto é, aquele que tinha as virtudes cristãs da boa moral seria bem-sucedido em suas empresas, Maquiavel sabe que a moral dá, vezes sem conta, errado no plano da prática. Assim, Isaiah Berlin diz que só entendemos Maquiavel se distinguirmos duas morais. Uma é a moral cristã, do fiel privado, que se relaciona com a vida eterna. Outra é a moral pagã, do homem que vive na cidade, o cidadão, para quem o principal é que a polis ou civitas perdure. Maquiavel não é imoral ou amoral, diz Berlin. Ele é o homem de uma moral deste mundo. Pouco falta para Berlin dizer: a moral que nos convém, cidadãos terrenos que somos, é a de Maquiavel.
Maquiavel hoje
A vida política atual está semeada de armadilhas, que colocarei do lado da fortuna. Temos vivido surpresas, no Brasil, quase todas negativas. Há poucos dias, um jornalista foi surpreendido dizendo que determinada ação idiota seria “coisa de preto”. Sua carreira está em jogo. O candidato que esteve perto da vitória na eleição de 2014 teve a reputação destruída por revelações talvez inesperadas. Digo talvez porque hoje o inesperado é cada vez mais provável. Num momento de acentuada destruição recíproca — que, com certo exagero, podemos comparar à Itália em guerra no tempo de Maquiavel — funciona a lei de Murphy: tudo o que pode acontecer de ruim, acontece. O que parecia provável há um ano ou três sumiu de cena. Mais coisas devem sumir.
Sarney teve o poder pela fortuna, mas governou sem ‘virtù’; Collor chegou à Presidência pela ‘virtù’, mas governou sem ela
O que é, ante esse triunfo da fortuna ou, se quisermos, dos infortúnios (que são seu nome no negativo), agir com virtù? Ninguém sabe. Os cenários que vemos darão, na maior parte, errado. Há veteranos e novatos na política que almejam o Palácio do Planalto em 2018. Qual é a virtù possível neste quadro, em que os imprevistos são inúmeros, em que os players se multiplicaram a tal ponto — com a entrada em cena de inúmeros juízes, da primeira instância ao Supremo — que a situação parece incontrolável? Do que precisaremos, da cautela de Alckmin, da prudência de Lula ou do ímpeto dos novos nomes, que disputam a pole position de salvador da Pátria? E quem ganhará, podendo ser inclusive uma pessoa inacreditável como Trump? Esse é um quadro tipicamente maquiaveliano.
E se olharmos a Nova República com as ferramentas de Maquiavel? (Porque afinal, como disse Michel Foucault, o que um filósofo — ele falava de Nietzsche — nos traz de bom é uma “caixa de ferramentas” para pensar). E se o chamarmos para pensar o Brasil recente? Usarei a virtù e a fortuna, somados a uma distinção forte na filosofia medieval: a diferença entre o título de acesso ao poder e seu exercício. Um rei podia ser tirano por defeito de título (subiu ao trono depondo o legítimo soberano) ou de exercício (era legítimo, mas governou de forma cruel e injusta). Vejamos, fundindo essas duas caixas de ferramentas, quem acedeu ao poder graças à virtù ou à fortuna, e quem exerceu o poder com virtù ou com fortuna.
O primeiro presidente civil em mais de vinte anos foi José Sarney, caso exemplar de subida ao poder pela fortuna. Sua indicação como vice foi quase um acaso. Ele pouco esperava dessa posição cerimonial, a não ser um fim de carreira tranquilo. Talvez, dedicar-se à literatura. Mas a morte inesperada de Tancredo Neves o levou à Presidência. E como a exerceu? Não foi com virtù. Teve o poder pela fortuna, governou sem virtù. Já o seu sucessor, Fernando Collor, foi um paradigma de chegada ao poder pela virtù: do nada chegou à Presidência, em meses, aproveitando o vazio de quadros à direita e o medo que esta tinha de Lula ou Brizola. Foi uma espécie de “vim, vi e venci”, como Júlio César resumiu uma de suas guerras. Mas também governou sem virtù.
Itamar, FHC, Lula
Itamar Franco, seu vice, subiu pela fortuna — graças ao impeachment de Collor — mas, graças ao Plano Real, foi o primeiro presidente da Nova República a findar o governo com virtù. Também seu sucessor, Fernando Henrique Cardoso, se tornou presidente pela fortuna — indicado que foi por Itamar, que poderia ter escolhido outro nome para colher os louros do Plano Real — mas terminou o mandato esbanjando virtù. Lula foi o segundo nome deste período a subir à Presidência pela virtù — em seu caso, uma qualidade que se fortaleceu lentamente, em sucessivas derrotas — e o único nome dos que estamos considerando a mostrar virtù tanto no acesso ao poder quanto em seu exercício. Já Dilma Rousseff atingiu a direção do país por um lance de fortuna, indicada por Lula, mas não mostrou virtù para manter-se no poder.
Esse breve mapa mostra como Maquiavel é adequado para pensar a política dos príncipes que sempre serão novos e temporários — a característica da democracia moderna. E mais um ponto importante: ele estuda a ação política. A discussão moderna sobre o poder tem dois polos. Um é a ação política, o outro as instituições políticas. As instituições tornam o indivíduo e suas qualidades (arrojo e cautela, unindo-se na prudência) pouco necessários. Elas sucedem, na modernidade, à questão de termos boas leis (os pensadores antigos perguntavam o que era melhor: ter bons governantes ou leis boas).
Assim, se tivermos instituições que se equilibrem, como os três poderes do presidencialismo, funcionando na base de freios e contrapesos (checks and balances), a qualidade pessoal do presidente, dos parlamentares e dos juízes importa pouco. A estrutura complexa do poder evita abusos e faz funcionar bem a máquina política. Mas, se pensarmos mais na ação política — e em especial na ação política inovadora, cujo modelo é a revolução — as instituições serão tidas por conservadoras, insuficientes, inoperantes. Então a liderança se torna crucial. Perante instituições envelhecidas, ineptas para promover mudanças, será necessária a ação. Em épocas de transformação — como a que vivemos, com idas e vindas, desde a Revolução Americana e a Francesa —, o ator político se torna mais relevante do que o jogo institucional. Então, o que dizer, para concluir, do Brasil hoje?
Nosso panorama está turvo. Uns dizem que as instituições funcionam. Não concordo. Os dois poderes propriamente democráticos (porque são os dois eleitos, Executivo e Legislativo) se tornaram fracos no segundo e interrompido mandato de Dilma, e assim continuam após seu impeachment. Já o Judiciário, que entrou no lugar deixado vago desde que a presidenta perdeu a maioria no Congresso e que este se mostrou um dos piores de nossa história, também está perdendo a reputação. Salários superiores ao teto constitucional são um dos fatores a macular a imagem do terceiro poder. É difícil dizer que as instituições funcionam quando o respeito de cada um pelas sentenças judiciais depende da convicção política do indivíduo, não de seu apreço pelo que dizem a Constituição e as leis.
Depois de dois grandes presidentes, FHC e Lula, ficou nos faltando um terceiro grande líder, o que não é trivial nem provável em uma democracia
Estamos, então, no momento da ação política? Precisamos de atores fortes, líderes, príncipes novos que desatem os nós que travam a situação política e social? Ela se torna decisiva nesta hora. Mas os candidatos a líder se desgastam a uma velocidade surpreendente, muitas vezes devido a algo inesperado, como uma gravação que vaza. Teremos um ou mais príncipes com têmpera para sairmos desse labirinto em que nos metemos? Independentemente de nossas simpatias políticas, não se vê, fora Lula, quem ocupe hoje esse papel. Notem o problema que isso traz: depois de dois grandes presidentes, ases na liderança e na comunicação, que foram FHC e Lula — mas que justamente foram excepcionais, um golpe de sorte (ou de fortuna) em nossa história —, ficou nos faltando um terceiro grande líder. O que não é trivial, nem provável. Em nenhuma democracia moderna houve uma sequência ininterrupta de três líderes excepcionais por sua qualidade.
E aqui saímos da oposição entre ação e instituição, para outra: por um lado, o grande líder, que reduz quem o rodeia a anões políticos, líderes medianos, sem envergadura, e pode puerilizar os cidadãos e, por outro, os próprios cidadãos, que não podem depender por tão longo tempo de quem os salve ou, pelo menos, os tutele. A democracia moderna vive com uma sucessão de príncipes novos, mas eles não podem ser importantes ou numerosos demais.
Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.
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