David Viñas e Clarice Lispector (Reprodução)

Crítica Literária,

Um convite à imaginação

Crítico lança novo olhar sobre a obra de autores como David Viñas e Clarice Lispector e vincula forma literária a possibilidade política

08jul2025

A noção de que a crítica literária também é um exercício de imaginação pode parecer, em tempos obtusos como este século 21, uma heresia. As convicções e a leitura do senso comum asseguram que essa modalidade de texto serve, na melhor das hipóteses, como forma de interpretação do sentido da ficção. Dito de outro modo, é como se a crítica, para além do exercício do julgamento e da formação de consenso sobre o gosto, tivesse como missão fundamental decifrar a obra literária de modo a apaziguar os ânimos e evitar a surpresa dos leitores. Quem vai com essa expectativa ao recém­-lançado Antiliteratura: a política e os limites da representação no Brasil e na Argentina modernos pode se frustrar.

Seu autor, Adam Joseph Shellhorse, professor do Departamento de Espanhol e Português na Universidade Temple, na Filadélfia, defende uma abordagem multidisciplinar para entender a obra de autores de ambição subversiva, na direção contrária às estéticas vigentes no Brasil e na Argentina. Não é uma leitura simples, mas, se por um lado a análise é densa e entrecortada de referências, por outro, apresenta ampla gama de significados, conferindo uma criação original ao tratar de autores tão díspares como Clarice Lispector, David Viñas, Augusto e Haroldo de Campos, Osman Lins e Oswald de Andrade. Como se trata de um denso exercício de crítica literária, o autor não se importou em trazer informações biográficas dos autores. Em vez disso, preferiu investir na dissecação das literaturas em discussão.

É exatamente este o ponto alto do livro. Ao articular vasto repertório acadêmico-literário a uma paixão irresistível pela literatura, Shellhorse é capaz de revelar os autores até mesmo aos seus leitores mais aficionados. É desse modo que retira o véu de Macabéa, de A hora da estrela, trazendo não apenas grande arsenal de leituras cruzadas sobre Lispector, mas indicando onde está a relação com a antiliteratura. Assim escreve o autor: “o que está em jogo é uma compreensão subversiva e antiliterária da forma”. Nesse sentido, prossegue, “o grande problema subjacente a A hora da estrela é o de levar a literatura a seus limites”.

Recorrendo à crítica francesa Hélène Cixous, Shellhorse assinala a obra de Lispector como um contraponto ao que se entende por literatura, uma vez que pode ser vista como a antítese do romance clássico. A hora da estrela, sublinha ele, põe em xeque as dimensões representacionais da escritura, de forma a levar o leitor a uma árida paisagem de signos. A título de exemplo, o crítico diz que o nome da protagonista, Macabéa, remete ao exército rebelde de Macabeus. Pontua, ainda, como a obra de Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, Cândido Portinari e o Cinema Novo salientam a diferença entre campo e cidade. Nesse sentido, a obra de Lispector é um contraponto justamente porque oferece uma resposta tanto à literatura regional da época (graças à condição subalterna de sua personagem) como à crítica de que seus romances, porque líricos e subjetivos, seriam alienados.

O cinema volta à discussão no capítulo seguinte, no qual se investiga a obra de David Viñas. O título da seção não poderia ser mais indicativo do tema em discussão: “Antiliteratura e política em Viñas”. Shellhorse anota que a obra de Viñas nada contra a corrente do establishment literário da década de 50 na Argentina. Assim, para se opor a autores como Jorge Luis Borges e Silvina Ocampo, Viñas busca Sartre como referência, a América Latina como destino e o cinema como forma. Em uma reviravolta contra o cânone, o crítico aponta que o gesto antiliterário repousa na escolha da paródia e da canibalização cinematográfica. Discute ainda como o cinema argentino, a mídia de massa a certa altura do século 20, tinha “passado a dominar o imaginário do público”.

Canibalização

Ao retomar os autores do Brasil, tomando como gancho a obra de Oswald de Andrade, Shellhorse articula o autor do Manifesto da Poesia Pau-Brasil a Lispector e Viñas, ressaltando a natureza do seu projeto antiliterário (seja como poesia ou antipoesia). O crítico delineia um caminho: há uma articulação possível entre a poética da antropofagia, a percepção dos poetas concretos e a apropriação da escritura pela era pós-literária, marcada “pela canibalização da publicidade, da mídia popular, do desenho industrial”.

A leitura que Shellhorse faz dos concretos parte, assim, da obra de Oswald, mais especificamente porque o concretismo recuperou o modernista em 1964, primeiro ano da ditadura militar. Essa associação envolve não apenas a intencionalidade ideológica, mas o trabalho de identificar na escritura de Oswald um caminho para a expressão — que passava pela antiliteratura. O trecho a seguir é singular:

Fazer poema, como declara Augusto de Campos, é se arriscar com a linguagem (Poesia é risco). Em outras palavras, como na poesia de Oswald nos anos 1920, a inovação requer aventurar-se nos espaços desérticos da não-poesia.

Trecho de Adam Joseph Shellhorse “Antiliteratura: a política e os limites da representação no Brasil e na Argentina modernos”

Saiba mais sobre o livro

Os irmãos Campos aparecem outras vezes, mas é no capítulo dedicado a Haroldo de Campos e a Osman Lins que o exercício de reflexão problematiza a visão do cânone latino-americano da segunda metade do século 20. Se o boom latino-americano se impôs como movimento literário de modo inescapável para a discussão estética e como forma de escrita, também é verdade, conforme Shellhorse, que a escrita de Lins se notabiliza por uma operação que resgata o barroco, desenvolvendo uma marca autoral que não ignora o que ele classifica como “nossa individualidade”.

E o que torna a intervenção do autor especialmente convincente é como ela vincula a forma literária à possibilidade política. A antiliteratura se torna um método de pensamento decolonial — recusando os legados dos cânones literários europeus e suas hierarquias implícitas e, em vez disso, promovendo estratégias estéticas opacas, híbridas ou “intraduzíveis”. Como crítico, Shellhorse não está apenas teorizando um estilo literário; está defendendo uma mudança radical no modo como concebemos a função da literatura na sociedade. A antiliteratura convida os leitores a abraçar a ambiguidade, a reconhecer os desafios políticos da forma e a resistir ao consumo e a interpretações fáceis. É uma literatura que fala por não dizer explicitamente. Para quem tem medo de crítica literária, Shellhorse faz um convite à imaginação.

Quem escreveu esse texto

Fábio Silvestre Cardoso

Jornalista, é autor de Capanema: a história do ministro da Educação que atraiu intelectuais, tentou controlar o poder e sobreviveu à Era Vargas (Record).

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