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Mas sempre um homem

Ao juntar experiências pessoais à análise de grandes obras da literatura ocidental, Ligia Gonçalves Diniz constrói com humor um panorama detalhado da infelicidade masculina

01dez2024 • Atualizado em: 28nov2024 | Edição #88 dez
A crítica literária Ligia Gonçalves Diniz (Thais Alvarenga/Divulgação)

Há um espectro que ainda ronda o Ocidente: um espectro pálido, egoísta e com potência baixa. Podemos percebê-lo no centro de todas as catástrofes que se avizinham — as ambientais, as políticas, as econômicas e as psíquicas, entre tantas em curso. O homem ressentido, todos sabemos, é uma das forças mais destrutivas em atividade. Estudá-lo deixou de ser apenas um tópico acadêmico para se tornar, dentro e fora das universidades, uma urgência planetária.

Biologia, neurociência, psicanálise e sociologia já iluminaram partes significativas do problema. Mas, se a literatura é a linguagem da alma, poucos trabalhos são tão aptos para dar conta da dimensão dos conflitos internos masculinos quanto O homem não existe, de Ligia Gonçalves Diniz, livro que mergulha na longa história da ficção ocidental para decifrar questões que há séculos têm norteado o gênero.

De Homero a Ben Lerner, a pesquisa de Diniz é original não só pelo recorte amplo, mas também por aceitar as lacunas inevitáveis de um trabalho dessa magnitude. O modo encontrado para lidar com isso é uma escrita de perspectiva intimista que ganha a forma de conversa franca, aberta e bem-humorada. Sem recorrer a jargões da teoria literária, a autora revisita textos gregos, latino-americanos, franceses e anglófonos enquanto revela o impacto dessas leituras — sobretudo das figuras masculinas — na construção de sua própria identidade.

Leitora que “queria ser o herói que tinha um cavalo que falava inglês e também a noiva do caubói”, Diniz assume as próprias incoerências e se permite explorar, com sinceridade e empatia, as ambivalências da imaginação masculina. Transita, assim, entre a comoção, o deboche e o estranhamento ao analisar o falocentrismo e a decadência da libido em Philip Roth; a frustração com a autoimagem em Um, nenhum e cem mil de Luigi Pirandello; e a brutalidade e culpa de Paulo Honório, protagonista de São Bernardo, de Graciliano Ramos. São dezenas de livros comentados por uma mulher que busca compreender por que os homens são ou não são todos iguais.

Para os gregos antigos, aponta Diniz, não existia entre os homens a ideia de raiva infundada

“A literatura é um troço perigoso”, ela escreve. “E ainda mais ameaçador quando nos lembra de como o ser humano é contraditório.” Nesse exercício de paciência — o mundo masculino, como Diniz logo percebe, é “meio deprimente” —, a crítica literária procura por origens.

Em um dos pontos altos dessa busca, na terceira e última parte do ensaio, a autora investiga de onde viria a aceitação da raiva como valor hegemônico masculino. A constatação é de que já na Ilíada, primeiro épico homérico, a ira era uma emoção bem quista e incentivada entre homens. Na verdade, movia o mundo. Como expõe Diniz, no grego antigo, tanto “fúria” quanto “cólera” podem ser a tradução do termo que abre o poema: menis. A raiva, portanto, marcaria o início da literatura ocidental.

Para os gregos antigos, aponta Diniz, não existia entre os homens a ideia de raiva infundada. A cólera na Ilíada, por exemplo, é uma “decisão dos deuses e uma extensão da violência da natureza”. Já em relação às mulheres, a raiva era vista como confirmação da insensatez feminina. Retrato disso é Clitemnestra, personagem que mata por ciúme o marido Agamêmnon e sua amante Cassandra: uma representação negativa de esposa movida a vinganças matrimoniais.

O estereótipo segue presente nos séculos seguintes em obras de autores consagrados. Em Guerra e paz, como analisa Diniz, as figurações femininas concebidas por Liev Tolstói só se enraivecem por meio de chiliques possessivos. “São algo pior do que violentas: são ridículas”, escreve a ensaísta, fã declarada do russo. Em Stoner, do escritor norte-americano John Williams, mais do mesmo: a personagem reprimida de Edith só explode em fúria ao ter sua vida familiar abalada por uma traição. Para esses autores, até a raiva feminina gira em torno do falo.

Ainda hoje vemos, fora das páginas, irradiações dessas construções ficcionais. Basta pensar na glorificação da cólera masculina em competições esportivas, na postura desequilibrada de políticos populistas e nos discursos que associam a fúria à figura mítica do “macho alfa”; a ira feminina, por sua vez, é deslegitimada por meio de ironias que miram pautas feministas e pelas demandas masculinas por mulheres menos inconformadas.

Para a ensaísta, que descreve com humor suas destemperanças desde a infância, a “justiça de gênero chegará apenas no dia em que todos pudermos ter direito a nossos rompantes, e não só os homens brancos e heterossexuais”. Há, na frase, uma reivindicação da raiva. Em vez de negá-la em tempos de discursos de ódio contrapostos aos de correção, Diniz sugere moldá-la e direcioná-la para outros lugares: alvos que promulgam injustiças e explorações de homens e mulheres, convenhamos, não faltam.

O que desejamos

De uma década para cá, a expressividade masculina ganhou conotação política mais evidente. Os progressistas reescrevemos a gramática do gênero, muitas vezes de modo culpado e submisso — nada mais deprimente do que o arquétipo do feministo. Já os conservadores, amedrontados, resgatam dogmas retrógrados em nome de uma masculinidade canastrona e agressiva. Cada grupo é infeliz à sua maneira.

A tristeza, não por acaso, é um dos eixos mais importantes do ensaio. Seja com Montaigne, “um baixinho impotente”, ou com a masculinidade insegura de Ernest Hemingway, o desejo dos homens literários é, segundo a autora, “frequentemente infeliz”. Uma das causas, ela sugere, seria a pobreza do imaginário masculino. Como alcançar alguma plenitude quando todas as compensações e vontades sexuais estão centradas nos genitais?

Responder a essa questão só não é mais difícil do que entender por que nós, homens, nos tornamos isso. Embora os gregos tivessem vidas supostamente mais livres e ideias diferentes acerca do desejo, também não pareciam muito felizes. Toda a turma aristotélica era bastante melancólica. Desde lá, a ideia de que a inteligência está atrelada à desesperança nos persegue. Com Freud, como expõe a autora, a imbricação entre lucidez e tristeza ganha intensidade. Os homens sensíveis e intelectuais contemporâneos parecem fadados ao desencanto. Ter ciência de ocupar um labirinto impiedoso seria a única saída civilizatória. Diniz questiona o quanto dessa tristeza ou tormento não é vontade consciente ou afetação.

Os homens sensíveis e intelectuais contemporâneos parecem fadados ao desencanto

Aqui, me permito um tom mais pessoal. Como melancólico a contragosto, discordo que seja algo premeditado. Assim como a própria autora, eu e muitos homens letrados gostaríamos de nutrir uma esperança maior. O que nos impede, arrisco dizer, é sentirmos e projetarmos, a fundo, os fardos biológicos e culturais que carregamos. Os homens não são todos iguais, mas sabemos, dentro de nós mesmos, que também somos. Estamos sempre em disputa, imersos em um caldo turvo de competição, agressividade, narcisismo e desejos que não cessam — a maioria dos homens acredita que o mundo lhes deve algo, o que é, por si só, um impasse insolúvel. 

Parte disso é construção social; outra, assim como o inconsciente, um mistério orgânico com o qual não sabemos lidar. Por mais que tentemos nos desvencilhar do bando ou, vá lá, nos desconstruir (verbo desgastado que virou piada entre ambos os gêneros), essa herança paira no interior de nossas cabeças.

O que o livro de Diniz faz pensar é que talvez haja tempo de imaginarmos saídas mais harmônicas para nós mesmos. E de buscarmos, quem sabe, alternativas ao modo de vida predatório atual. Algo me diz que vêm daí os motivos para tanta desolação.

Quem escreveu esse texto

Guilherme Pavarin

Poeta e jornalista, é autor de O maquinário fantasma (Urutau).

Matéria publicada na edição impressa #88 dez em dezembro de 2024. Com o título “Mas sempre um homem”

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