

Crítica Literária,
No coração da ficção
Coletânea de Alexandre Nodari explora a afinidade entre literatura e antropologia, iluminando a criação de mundos e seres ficcionais
24jan2025 • Atualizado em: 27jan2025 | Edição #90 fevO grande romancista argentino Juan José Saer sugeriu certa vez definir a literatura como “uma antropologia especulativa”. A hipótese é por si só um achado, mas aparecia em seu artigo “O conceito de ficção” (1989) numa única frase explícita. Em entrevista posterior, Saer estendeu-se brevemente sobre a ideia, não indo, no entanto, além de um parágrafo. Continuava valendo, pode-se dizer, o modo como encerrara o assunto no artigo: “o tema é árduo e convém deixá-lo para outra vez”.
Essa outra vez chega agora, com todas as letras, no impactante livro de ensaios articulados de Alexandre Nodari, A literatura como antropologia especulativa (conjunto de variações). Nodari reafirma sistematicamente sua dívida para com a frase seminal de Saer, mas o fato é que ele a entronca, de maneira sólida e original, com as reflexões de Claude Lévi-Strauss sobre a particularidade ambivalente das ciências sociais, a de terem um objeto que é ao mesmo tempo sujeito, isto é, as sociedades humanas. Juntamente, e não por acaso, explora com extraordinária agudeza o campo aberto pela antropologia especulativa, de alcance filosófico, de Eduardo Viveiros de Castro.
Uma corrente de textos de alta densidade teórica, que pedem leitura árdua, mas nada árida

O resultado é uma corrente de textos de alta densidade teórica, rara em nossos tempos, em que a ficção é levada a sério, ontologicamente, como criadora de mundos e como instauradora de interações reversivas entre os eus e seus outros. Nodari extrai desse princípio um sem-número de consequências muitas vezes estonteantes sobre literatura e mito, historicidade e estoricidade, pensamento e magia, mais as implicações políticas disso tudo, que pedem leitura árdua, mas nada árida.
A antropologia em questão não é, pois, a convencional, em que o cientista examina as representações e crenças do nativo, tomando-o como objeto representativo de um mundo arcaico. Em vez disso, constitui-se na experiência que tem como objeto um sujeito — no caso o indígena, sujeito de ontologias e cosmologias de validade plenamente atual. “Para dar conta de um objeto que é um sujeito”, diz Nodari, “é preciso que o sujeito da investigação [o etnógrafo] se transforme ele próprio nesse objeto, isto é, que ele se ‘objetive’ como um outro sujeito”.
Em outras palavras, o observador não só observa o outro, mas observa como este outro se observa, transformando-se parcial e transversalmente nele, e se observa tal como seria observável pelo outro, percebendo-se afinal diferente de si mesmo. A essa experiência de especulação alterizante Nodari dá o nome de obliquação, e podemos dizer que ela é a chave-mestra do livro: a instauração, no jogo cruzado entre o eu e o tu, de um “mim”, um eu-outro oblíquo, um eu para o outro de mim.
O exemplo mais que eloquente desse processo, no campo etnográfico, vem a ser o livro A queda do céu (Companhia das Letras), resultante da conversação transversal de Davi Kopenawa com o antropólogo Bruce Albert. E seu correspondente literário de vulto é Grande sertão: veredas, produzido na “matéria vertente” da fala com a escrita, assumida por um interlocutor ocultado do personagem-narrador, que o escuta e escreve.
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Assim, se a obliquação está no cerne de uma antropologia ontologicamente revirada, esse é também, a seu modo próprio, o coração da ficção. Como quase sempre, Nodari encontra a mais completa tradução de seus conceitos em frases fulgurantes de Clarice Lispector. É o caso:
Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outros dos outros era eu.
A ficção literária tende a ser feita desse mesmo nó de nós cruzados, que em Clarice é agudamente autoconsciente, e tantas vezes autoexposto. Na literatura, diz Nodari, “o autor se objetiva, se obliqua em narrador, em personagens, heterônimos, etc.; e, por sua vez, o leitor se subjetiva naqueles que, num texto literário, dizem eu”.
É a partir do pacto pronominal da obliquação (em que se diz um eu que é eu não sendo eu) que a ficção pode projetar mundos inexistentes que sondam não a realidade, mas o espectro virtual das possibilidades humanas e trans-humanas, adentrando através da “imaginação simpática” a existência de seres que nunca existiram mas que podem aparecer mais vivos que os vivos (como Dom Quixote), assim como adentrando a existência de um feto, ostra ou morcego — sugestões bebidas em Milan Kundera (A arte do romance) e J. M. Coetzee (Elizabeth Costello). Mundos ficcionais que habitam não fora, mas na “vera dentridade do real” (Joyce), onde a inexistência faz-se in-existência e onde prevalece não o irreal mas o inreal (novamente Clarice).
A afinidade da literatura com a antropologia tem por base, portanto, um efeito linguístico: o jogo pronominal e a enunciação. A ficção é, para todos os efeitos, segundo Nodari, um deslocamento do lugar de quem diz. Em “Alterocupar-se” (capítulo 6), ele acrescenta aos elementos linguísticos e antropológicos já expostos uma conexão psicanalítica inusual. Recorre, para o entendimento da ficção, ao conceito de “objeto transicional” formulado por D. W. Winnicott.
Segundo o autor, a ficção é, para todos os efeitos, um deslocamento do lugar de quem diz
A expressão diz respeito àqueles objetos aos quais as criancinhas se aferram nos primeiros anos de vida (um pedaço de pano, um travesseiro, uma mantinha, um bichinho de brinquedo). Em termos winnicottianos, trata-se da exploração de um primeiro ensaio de objeto externo por parte daqueles que, começando apenas a sair do estado de fusão simbiótica com a mãe, não distinguem ainda a realidade interior da realidade externa. Apossando-se desse objeto que a possui, a criança cria com imensa fé cênica uma realidade liminar que se prevalece da obliquação, pois a “naninha” é de algum modo a criança já fora de si e é a mãe tomada para si como um outro fora dela, sem deixar de ser uma terceira coisa, a “terceira margem” que vai constituir um eu que antes disso não havia.
Nesse acerto entre a “substância da ilusão” e o desilusionamento próprio do processo de emancipação subjetiva e objetiva, Winnicott enxerga um fundamento perene da atividade artística. Nos termos de Nodari, “a primeira experiência da subjetividade é a da obliquação”, e a primeira personagem de nós mesmos, antes do eu, é uma personagem de ficção consubstanciada num objeto transicional.
Variações vertiginosas
Tudo isso de que falamos não é senão o mote primeiro do “conjunto de variações” que constitui o livro, e que move o seu caráter intensivamente mercurial e vertiginoso, escrito não “sob o ponto de vista da eternidade”, mas da alteridade. Revirada com rigor pela perspectiva indígena, xamânica, mítica, mágica, a literatura se mostra (enquanto instituição caudatária das sociedades de Estado e da linhagem dinástica em que se sucedem Deus, Cristo, o Papa, o Imperador e o Artista) como confinada a uma espécie de liberdade inócua em meio à (des)ordem capitalista.
Mas, revirado de volta por escritores-pensadores — no caso, Oswald de Andrade, Guimarães Rosa, Clarice Lispector —, essa reserva de fantasia se mira pelo avesso e ganha o poder de sair de si mesma por dentro. O que a leva a consequências as mais atuais.
Um impressionante ensaio final, quase uma alegoria política sobre a posição de Sherazade em As mil e uma noites, em que a mulher é subjugada pela truculência do império masculino, especula sobre o contrapoder da narrativa feminina e sobre a literatura “enquanto o conjunto de funções que resiste à morte pela palavra” (“Sherazade e as mil e uma Palestinas”, capítulo 1001).
Em suma, um livro que tem tudo para dar trabalho, nos vários sentidos da expressão.
Matéria publicada na edição impressa #90 fev em fevereiro de 2025. Com o título “No coração da ficção”