O professor de filosofia e ensaísta Pedro Süssekind (Divulgação)

Crítica Literária,

Navegando em águas claras

Com clareza e erudição, ensaios de Pedro Süssekind servem com guia a leitores não iniciados nas obras-primas de Homero, Shakespeare e Rosa

01jan2025 • Atualizado em: 08jan2025 | Edição #89 jan

A ideia de um livro de ensaios a respeito de Homero, Shakespeare e Guimarães Rosa, por princípio, pode causar espanto ou certa incredulidade. Como tratar de autores tão monumentais e de algumas de suas obras-primas — Odisseia, Rei Lear e Grande sertão: veredas — em um volume de ensaios, além do mais, relativamente magro? É essa a proposta de O mar, o rio e a tempestade, que o pesquisador e professor de filosofia Pedro Süssekind acaba de lançar pela Tinta-da-China Brasil, na coleção “Ensaio Aberto”.

Ao longo de seis ensaios, dois sobre cada título, Süssekind chega a tematizar a grandeza dessas obras — por exemplo ao dizer, por meio de um crítico de Shakespeare, A. C. Bradley, que estamos diante de “um dos maiores poemas do mundo”. Tal grandeza logo se faz notar também na gama de questões que o autor elege em sua interpretação desses textos: temas imponentes e heroicos como a natureza da verdade, o confronto com o nada, medo e coragem, redenção e a relação entre homens e deuses (por vezes demônios) são mobilizados na tentativa de elucidar, sob diferentes ângulos, aspectos cruciais das obras estudadas.

Mas nem por isso o livro de Süssekind deve ser motivo de espanto, mesmo aos leitores mais incrédulos. Os ensaios são escritos de maneira descomplicada, sem qualquer afetação de estilo ou exibicionismo de erudição — que o autor claramente possui. Na verdade, apesar do título, cheio de imagens caudalosas que dizem respeito aos seus objetos de análise, o estilo e a abordagem devem ser caracterizados mais como secos, enxutos.

Süssekind costura de modo hábil vínculos nada óbvios entre as obras, que lidam com problemas filosóficos

Esta talvez seja a principal virtude de O mar, o rio e a tempestade: clareza estilística e de pensamento, erudição e astúcia de leitura andam juntas em favor da instrução, resultando em um texto, antes de tudo, agradável de ler. Eu diria que o livro de Süssekind, embora não tenha nascido necessariamente com essa vocação, funciona também como uma espécie de guia para os leitores não iniciados nas obras-primas de Homero, Shakespeare e Rosa, dada a sua eficácia e didatismo — que não devem ser confundidos com reducionismo e simplificação.

Além de tencionar hipóteses próprias sobre cada obra, os ensaios partem de um diálogo profícuo com outras leituras críticas, assim como da elucidação de trechos do enredo, com um tom eventualmente próximo à resenha, que chega a enfraquecer, por outro lado, os voos mais especulativos. Trazem ainda uma contextualização histórica que leva o leitor a entrar e sair de três mundos diferentes: a Grécia antiga, a Inglaterra moderna e o Brasil do século 20. Tudo em duzentas páginas.

No prefácio, os organizadores da coleção, Pedro Duarte e Tatiana Salem Levy, têm razão quando afirmam que os ensaios podem ser lidos duplamente: tanto de maneira autônoma — os textos são independentes um do outro — quanto em um “processo cumulativo” — ou seja, a partir das relações que vão sendo estabelecidas entre eles no decorrer da leitura. Embora sejam três obras-primas de diferentes procedências, gêneros, tempos históricos e tradições, Süssekind vai costurando de modo hábil certos vínculos entre elas que não são nada óbvios, a começar pelas imagens do título: o murmúrio do mar tem o ritmo e o som do discurso épico; tempestade é a expressão da tormenta que desaba sobre a vida do rei de Shakespeare; enquanto o rio, naturalmente, é o próprio Riobaldo.

Problemas filosóficos

O ponto de partida do livro é logo enunciado pelo autor: as três obras lidam com tipos de problemas que são essencialmente filosóficos. Sobre Grande sertão, por exemplo, Süssekind analisa tanto o “valor metafísico-religioso” do romance — cujo narrador “se orgulha de sua capacidade especulativa” — quanto o retorno do elemento épico, que se mescla no livro a outros gêneros poético-literários. Riobaldo chega a enunciar frases (“Eu quase que nada sei. Mas desconfio de muita coisa”) que ecoam célebres formulações de filósofos, como Sócrates (“Só sei que nada sei”) e Montaigne (“O que sei eu?”), o que confere efeitos decisivos sobre o tipo de imaginação do narrador.

Quanto ao retorno do épico na obra de Rosa — se não se trata de assunto original, como o próprio Süssekind deixa claro ao reler outros críticos que estudaram o tema, a exemplo de Roberto Schwarz —, o autor elucida o tema com contribuições próprias, sobretudo na parte final do ensaio, ao discutir certa tensão no romance entre registro oral e escrito.

Já a peça de Shakespeare Rei Lear também impõe perguntas que são “de ordem metafísica”, conforme argumenta, sobretudo essa: “O que governa o mundo?”. Ou seja, existe uma providência divina ou os homens estão abandonados à própria sorte? No segundo ensaio sobre a peça, “O nada e a nossa condição”, o mais interessante do livro, o autor faz uma leitura de Rei Lear a partir de sua relação com os números, ao interrogar os diversos sentidos da palavra “nada” ao longo do texto shakespeariano.

O leitor atento notará ainda que os ensaios fazem ecoar diversas questões uns sobre os outros, sem que tais relações precisem se tornar explícitas. Um comentário sobre o problema da justiça na Odisseia, nesse sentido, pode valer, mesmo inadvertidamente, para esclarecer aspectos do romance de Rosa, e vice-versa. Por sua vez, se o rei de Shakespeare se vê abandonado à própria sorte, o mesmo não pode ser dito a respeito dos heróis da Odisseia, frequentemente guiados pelos deuses. E o que falar, a esse respeito, sobre os personagens de Rosa?

O tema da simulação e do disfarce também é crucial nesse sentido e ronda as três obras. A deusa Atena se disfarça de estrangeiro para dizer a verdade a Telêmaco, filho de Ulisses, enquanto Edgar, filho do conde de Gloucester, se finge de mendigo por outros motivos na peça de Shakespeare e Diadorim se veste de homem para vingar a morte do pai.

Como um rio que deságua no mar e que forma tempestades repentinas, os textos de Homero, Shakespeare e Rosa também se comunicam por meio de conexões inesperadas que a leitura de Pedro Süssekind, de modo competente e sensível, inventa e refaz.

Nota do editor

A Tinta-da-China Brasil é o selo editorial da Associação Quatro Cinco Um, que publica a revista dos livros

Quem escreveu esse texto

Victor da Rosa

É crítico literário e co-organizador da antologia 99 poemas de Joan Brossa (Demônio Negro).

Matéria publicada na edição impressa #89 jan em janeiro de 2025. Com o título “Navegando em águas claras”

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