Biografia,
A vida interrompida de Martin Luther King
Sem evitar desvios e falhas, Jonathan Eig traça retrato em alta fidelidade de líder pacifista, cujo sonho parece cada vez mais distante
14nov2024Martin Luther King Jr. tinha um sonho. Proferido nos turbulentos anos 60, o discurso mais citado do ativista pelos direitos civis e prêmio Nobel da Paz é uma espécie de emblema para falar de temas como direitos humanos e luta antirracista. Mas a vida de Martin Luther King Jr. vai além de sua persona pública e é digna de um romance, como atesta a biografia escrita por Jonathan Eig e ora publicada no Brasil pela Companhia das Letras. Mais do que a trajetória de um personagem inescapável do século 20, o que se lê em King: uma vida é a história de uma batalha política que, depois de ter começado no sul dos Estados Unidos, inspirou corações e mentes no mundo inteiro.
Eig começa a narrar essa história tomando um episódio fundamental como referência: a participação do pastor batista em um protesto na cidade de Montgomery, no estado do Alabama, onde os linchamentos promovidos pelos supremacistas brancos contra os pretos faziam parte do cotidiano. A passagem em questão consegue capturar King em seu auge: um homem de fé inabalável, capaz de arrebatar e converter não apenas aqueles que seguiam o cristianismo, mas também quem se indignava com a desigualdade, o preconceito e a violência.
O ativista usava e abusava do plágio para a escrita dos seus textos, o que só seria revelado anos depois
Na primeira parte do livro, Eig mostra como o filho de um também pastor batista cresceu em um ambiente que o preparou para o dia seguinte da batalha contra o racismo sistêmico nos Estados Unidos. O autor explica como a religião foi fundamental para forjar a imaginação de King, levando-o a pensar a sociedade a partir da mensagem das Escrituras. O mais interessante é que o rebanho que esse pastor buscou apascentar ia além da igreja, porque a religião servia como engrenagem necessária naquele contexto social.
Chama a atenção como Eig destaca a maneira como o racismo era normalizado no sul dos Estados Unidos. O filme …E o vento levou, por exemplo, fez sucesso junto à comunidade branca de Atlanta, onde os King viviam na época do lançamento. A menção a esses produtos culturais, que aparentemente não estariam conectados com a história de King, é decisiva para a compreensão do quadro mais amplo: a cisma racial nos Estados Unidos — um dos temas fundamentais da biografia.
Segregação
Para além das menções a casos de racismo — que, talvez, no Brasil de hoje ganhariam o epíteto de “episódio isolado” seguido de “quem me conhece sabe” —, o livro de Eig ressalta como o ambiente político, cultural e institucional perpetuava a marca registrada do preconceito de cor. É bem verdade que Abraham Lincoln implodiu o edifício da escravidão com a Guerra Civil, mas a cisma não ficou resolvida de todo. Mais recentemente, obras como The Underground Railroad: os caminhos para a liberdade, de Colson Whitehead, e Entre o mundo e eu, de Ta-Nehisi Coates, exploram como essa divisão foi e ainda é marcante, mas o que a biografia escrita por Eig conta não poderia ser produzido pela imaginação literária.
No livro, King percebe como essa divisão é naturalizada durante uma viagem que faz ao norte do país. Lá, nota que não precisa se sentar em um lugar diferente, ficando apartado por conta da segregação, algo comum no transporte público no sul. Essa passagem é importante porque o autor já prepara o terreno para aquela que seria a estreia do pastor como pacifista para a opinião pública — e a primeira vez que o mundo ouviria a sua voz.
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Antes, a biografia apresenta os anos de formação de King. O livro destaca como o aprendizado se deu na universidade, espaço de prestígio onde conseguiu o título que carregaria adiante, o de doutor. Eig mostra seu compromisso com a história de seu personagem. Em vez de evitar desvios e falhas, o autor apresenta um retrato em alta fidelidade: o ativista usava e abusava do plágio para a escrita de alguns de seus textos, o que só seria revelado anos depois por pesquisadores que fizeram essa investigação. Se, para alguns, esse fragmento serve para desabonar King, para quem estiver interessado em uma narrativa mais complexa, o texto de Eig é um deleite precisamente porque não tem o compromisso de salvar o legado de King de si mesmo. Em tempos de culto à personalidade, essa premissa é um alento.
Passagens como a citada servem de contraponto a momentos em que King reina como o homem certo na hora certa. Em Montgomery, Rosa Parks se recusa a dar o lugar num ônibus para que um homem branco se sente. Esse episódio já foi contado tantas vezes que talvez a sua referência não fosse necessária. Ocorre que o modo como Eig apresenta o caso, para além de confrontar as diferentes versões existentes, dá nova dimensão ao acontecimento. Martin Luther King se projeta como ativista dos direitos humanos a partir daqui e sua liderança se impõe a partir de uma prática que nem sempre é lembrada nas disputas políticas do século 21: a não violência.
A peça elementar da vitória de King no episódio de Montgomery e em outros foi a tática da não violência. Ele liderava marchas e protestos; discursava para multidões e reafirmava sua posição frente às autoridades estabelecidas. Mas fazia tudo isso sem partir para o confronto — físico ou simbólico. Jonathan Eig mostra como isso é parte integrante de sua personalidade, que, desde a infância, rejeitava qualquer embate com o pai, “Daddy King”, que sempre exerceu influência gigantesca junto aos filhos. À sua maneira, King Jr. resolveu o problema ao adotar a não violência como forma de resistir a essa e a outras opressões.
Casos extraconjugais
Um de seus adversários mais agudos, no entanto, não jogava o jogo da discussão elevada. Preferia o estratagema do envenenamento permanente, apontando para as falhas de caráter do pastor batista. Eig relata que o diretor do FBI, o icônico J. Edgar Hoover, desenvolveu verdadeira obsessão em relação a Martin Luther King. Assim, estabeleceu o líder pacifista como alvo de suas famosas escutas, o que trouxe à tona os diversos casos extraconjugais de King.
Eig não se esquiva do assunto e confirma que, sim, King mantinha relacionamentos fora do casamento. À medida que o tempo passava, o chefão do FBI se indignava com o fato de que os jornalistas não revelavam os casos — uma hipótese para tanto, mencionada no livro, tem a ver com o fato de que os jornalistas à época sabiam que este era um caminho sem volta: se fossem falar da vida íntima de uma personalidade pública teriam de agir de forma equivalente com outros políticos. Talvez o mito dos Kennedy não tivesse sobrevivido a tamanho escrutínio.
Ainda assim, como escreve Eig, King sofria com as ameaças e, por conseguinte, com os ataques à sua vida pessoal enquanto sua estima junto à opinião pública nos Estados Unidos e no exterior aumentava. A liderança do pacifista era colocada à prova na exata proporção em que os desafios se avolumavam: novos protestos e violência racial ao redor estouravam, e a classe política não sabia o que fazer: de Kennedy a Lyndon Johnson, passando pelos legisladores, prefeitos e governadores. Na maioria das vezes, a única saída que esse grupo encontrava era a de sempre: mais truculência. Embora fosse preso com frequência, King sempre prevalecia pela tática da não violência.
A segunda parte da biografia aponta o ápice dessa estratégia: como King e seus liderados colocaram o país do avesso advogando a causa da dessegregação. Parece impossível, mas pessoas pretas não podiam coexistir nos mesmos ambientes com pessoas brancas, não frequentavam as mesmas escolas e nem sequer bebiam água do mesmo bebedouro. Não conseguiam se registrar para votar. A narrativa de Eig mostra como em poucos anos King conseguiu tornar essa percepção inadequada. Ainda assim, esse sucesso deu brecha para que um impasse se estabelecesse: a não violência passou a não surtir mais o mesmo efeito.
Conforme relata o biógrafo, King foi acumulando admiração da população de seu país, que, a certa altura, o percebia como uma personalidade necessária — a quantidade de crianças batizadas de Martin, nessa época, é um indício interessante nessa direção. Pouco a pouco, no entanto, suas críticas começaram a acusar o próprio fundamento da sociedade norte-americana. King passou a identificar como inimigo não apenas a dinâmica racista, mas também a desigualdade estrutural do país. Mais, até: King sofreu na própria pele o racismo no norte dos Estados Unidos, região em tese menos preconceituosa.
Nem mesmo o prêmio Nobel da Paz, concedido em 1964, foi capaz de salvar King de seu destino
Nem mesmo o prêmio Nobel, concedido em 1964, foi capaz de salvar King de seu destino. Eig mostra como ele foi ficando mais amargo perto do fim da vida e como as pessoas à sua volta passaram a colocar em dúvida sua capacidade de liderar. Muitos já desacreditavam dos protestos não violentos. E as mortes aumentavam, o ódio se retroalimentava e mesmo as lideranças políticas que o consideravam como aliado, como Lyndon Johnson, ficaram irritadas com King. O livro conta como sua morte não era apenas inevitável (já havia escapado de outro atentado), mas como ele próprio esperava por isso.
Ao longo de sua vida, King inspirou e liderou uma transformação decisiva da história dos Estados Unidos e — por que não dizer? — do mundo. Mesmo assim, o sonho “de que a nação um dia se levantará e viverá o significado de sua crença”, de que “todos os homens são criados iguais”, parece cada vez mais distante.
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