Crítica Literária,

O romance impossível

Paloma Vidal implode fronteiras da literatura para se aproximar de Barthes e seu livro inacabado

29nov2023

Em Não escrever [com Roland Barthes], Paloma Vidal nos apresenta um álbum de ensaios pessoais em torno do crítico e teórico francês. Álbum não tanto pelas fotos que há, e sim pelo caráter fragmentário e de anotação crítica, que combina verso, prosa e uma visão performativa do texto. E todos os ensaios conversam a partir de um tema em comum: o “não escrever”.


Não escrever (com Roland Barthes), de Paloma Vidal

Qual a relação do tema com a obra de Barthes? Afinal, ele é famoso justamente por provocar nos leitores o efeito contrário: o desejo de escrever — não necessariamente sobre ele, e sim com ele, sem que ele precise comparecer. Só um grande escritor costuma ser generoso assim, porque dá aos leitores aquilo que eles nem sabem de que precisam para ser eles mesmos.

Barthes, em seus ensaios, põe em prática o sabor da leitura e escrita como modo de vida. Em grande parte, tal sabor tem a ver com o caráter em processo de seus textos, como bem entende Vidal. O autor de clássicos como Fragmentos de um discurso amoroso é um mestre, não exatamente no sentido de mentor, e sim de artesão que nos ensina a pôr a mão na massa. Seus textos — sobretudo, dos últimos dez anos de vida do escritor, entre 1970 e 1980 — são uma oficina aberta a quem queira frequentá-la. Nela, Barthes costuma convocar diversos autores não como presenças de autoridade, e sim como presenças apaixonadas. Porque, para ele, a paixão é contagiante e ensina. 

Antes de ler o gesto criativo e crítico que Vidal faz com a obra de Barthes, vale fazer um breve passeio por temas e questões propostas pelo francês.

O fantasma da escrita, admiravelmente, pode ser o que mais alimenta o desejo de escrever

Na conferência “Durante muito tempo, fui dormir cedo”, proferida por Barthes em 1978, nós nos debruçamos sobre seu romance favorito: Em busca do tempo perdido. Diz o autor que o título poderia ser “Proust e eu”: “Mas isso não significa de modo algum que me comparo com o grande escritor, e sim, de um modo inteiramente diferente, que me identifico com ele”. 

Barthes especifica: “Não me identifico com o autor prestigioso de uma obra monumental, e sim com o operário, ora atormentado, ora exaltado, de qualquer maneira modesto, que quis empreender uma tarefa à qual conferiu, desde a origem do seu projeto, um caráter absoluto”.

Para ele, a obra de Proust “é a narrativa de um desejo de escrever”. Definição que também serve para os próprios livros de Barthes, mesmo sendo obras ensaísticas. Daí não ser surpresa que o crítico — antes de sua morte abrupta, em 1980, por atropelamento — tenha buscado escrever um romance, para o qual se preparou por anos, mas que ao fim nunca conseguiu escrever.

Tal projeto se fez presente durante os últimos dois cursos que ministrou no Collège de France e a que deu o nome de “A preparação do romance”. Nessas aulas, embora Barthes flerte com a monumentalidade da obra de Proust, acaba mesmo é por ir na direção da brevidade e do silêncio do haicai, como a sugerir que a ideia de um romance de sua autoria teria mais a ver com a escrita como vazio do que com a ideia de um livro finalizado.

Presença e ausência

Aqui chegamos ao tema do “não escrever”, proposto pelo livro de Vidal para a coleção Ensaio Aberto, publicada pela Tinta-da-China, em Lisboa, e Tinta-da-China Brasil (selo editorial da Associação Quatro Cinco Um). 

É diante desse lugar ao mesmo tempo de presença e ausência do romance que a autora se coloca. “Quando começou isso de me fantasiar de Barthes?”, escreve ela. Trata-se de uma fantasia bem específica: “Porque eu tentava/ fazia vários anos,/ sem conseguir,/ escrever um romance”.

Seguindo o gesto barthesiano de paixão crítica, Vidal vai em busca do autor francês não para se comparar a ele, e sim porque se identifica com ele, ao também não poder escrever um romance. E nessa aventura ela se vale de um registro “entre a primeira e a terceira pessoa,/ entre a conceituação teórica e a narrativa autoficcional”. Para a autora, não há velhas dúvidas quanto a quem fala em seus textos. As questões envolvendo o sujeito da sua escrita têm deslocamentos mais interessantes. Afinal, trata-se de encontrar “um bom eu”, não egoísta, um que preze pela “generosidade da enunciação”.

Toda essa história de escrever não escrevendo pode nos levar a uma pergunta que o argentino César Aira fez: “Por que queremos ser escritores, se o que desejamos é ser Rimbaud?”. Ou seja, escolhemos a literatura só para abandoná-la e assim viver com o fantasma da escrita que, admiravelmente, pode ser o que mais alimenta o desejo de escrever.

Vidal é alguém que lê o outro, isto é, que vive com ele, aproximando-se e também indo embora, arrastando-o e também sendo arrastada por ele

É curioso tal provocação vir do prolífico Aira, autor de mais de uma centena de livros. Barthes esteve bem longe desse número, mas escreveu bastante. Já Vidal publicou romances, poemas, contos e críticas. Porém é diante do romance que não pôde escrever que ela cria sua obra formalmente mais irrequieta, ao implodir fronteiras entre gêneros literários. Escreve ela: “Por motivos pessoais, por motivos políticos,/ por motivos difíceis de entender ou de explicar,/ se torna impossível continuar a escrever”.

Ainda sobre o livro que Barthes não escreveu: um de seus ex-alunos, o crítico Antoine Compagnon, arrisca dizer que o romance impossível do mestre talvez tenha se realizado, em parte, no último livro publicado em vida por ele: A câmara clara (1980), um ensaio seminal sobre arte fotográfica, mas que, em verdade, é uma longa meditação sobre a morte recente da mãe.

Como se sabe, Barthes tinha uma relação intensa com a mãe. Sempre moraram juntos, tendo ele sobrevivido a ela apenas por três anos. No fundo, sua escrita nunca deixou de ser a escrita de um filho. Já nesses ensaios de Vidal, ela é a mãe. E lá estão seus dois filhos, acompanhando-a na viagem da pesquisa, em busca de Barthes. Tanto que, um QR code no livro leva a um vídeo em que ouvimos a voz de um dos garotos falando com a mãe, enquanto vemos o outro sorrindo no banco de trás do carro em movimento. Estariam os três rumo a Bayonne, cidade onde o escritor passou a infância?

Por falar em mães e filhos, Vidal destaca um trecho de Como viver junto (curso dado por Barthes em 1976 e publicado postumamente), em que o autor vê, através da janela, uma mulher puxando o filho pela mão: “Ela vai em seu ritmo, sem saber que o ritmo do garoto é outro”. A autora transcreve o trecho duas vezes — numa delas o quebrando em versos, como se assim pudesse entrar fisicamente na frase do mestre. 

“Me choca que Barthes possa não ver/ o que eu vejo nessa cena”, escreve Vidal. 

Uma mãe-pesquisadora, ou uma pesquisadora-mãe, é uma mulher que carrega filhos para suas pesquisas. Sobre Roland Barthes, por exemplo. E às vezes eles simplesmente não querem ir. E é preciso puxá-los. Quem sabe até sacudi-los. Como muitas vezes eles me sacodem e me puxam, quando querem ir à pracinha ou ao shopping, ou querem qualquer coisa que eu não quero muito ou não quero nada.

A questão de Barthes, “como viver junto”, é ótima para nomear o próprio ato da escrita crítica de Vidal: alguém que lê o outro, isto é, que vive junto dele, aproximando-se e indo embora, arrastando-o e sendo arrastada por ele. Enfim, ficando perto. Por amor.

Quem escreveu esse texto

Leonardo Gandolfi

Professor de literatura portuguesa da Unifesp, é autor de Escala Richter (7letras).