Crítica Literária,

O que escrevo quando escrevo a verdade

De Charlotte Brontë a Annie Ernaux e Carolina Maria de Jesus, escritora questiona nossa obsessão em delinear fatos na literatura

01mar2024

A matéria-prima do escritor não é meramente a palavra. Democrática e abundante, a palavra é tomada por qualquer pessoa que queira escrever ou contar uma história. O brilho da pepita é a mentira, esta sim grande aliada do escritor. A palavra e a mentira associadas à linguagem compõem, portanto, o ouro — o valor literário da narrativa. 

O termo autoficção nunca deixou de me intrigar. Eu que minto tanto, como posso saber se os meus textos são uma verdade, uma invenção ou memória se suspeito que são tudo isso ao mesmo tempo?


A escritora Nara Vidal [Divulgação]

Representar o eu por meio da linguagem. Talvez essa seja uma ideia bastante próxima do que entendo por autoficção. Mas o problema já surge imediatamente na palavra “representar”. A representação é, para mim, uma performance tão inerente à memória quanto a memória é inerente à mentira. Quando Serge Doubrovsky deu nome ao que já existia, deve ter considerado o quão líquido o termo autoficção é. 

Escrever sobre si é um termo impreciso e exige tanto quanto redigir um romance histórico. Aliás, o tema na literatura me parece ser o que menos importa. Um texto se aproxima do seu valor literário, portanto, artístico, quando a estética e a linguagem, apuradas, diferem-se do que é corriqueiro. Falar da própria vida por meio da liberdade literária é tão arriscado quanto contar a história imponderável da vida do vizinho. O elemento surpreendente é que, talvez, o vizinho seja eu. 

Ordem e subversão

Pensando nesse aspecto de confiabilidade, termo bastante ingrato na criação literária, proponho considerar a sagacidade de uma jovem escritora inglesa do século 19. Quando Charlotte Brontë escreveu Jane Eyre, ela escreveu também que era uma autobiografia. Ainda que o livro traga os pontos de vista da Jane mais nova, Jane Eyre, e depois da Jane mais velha, Jane Rochester, Brontë se concentra em narrar do ponto de vista jovem, assim como era ela própria. E quando Jane Rochester conta a história, a autora traz hesitações sobre a veracidade dos fatos. É quando a perspicácia da escritora trata de subverter qualquer expectativa linear da ideia convencional de romance e autobiografia. Ou seja, não é apenas Jane Eyre que não é confiável; é Charlotte Brontë que não me parece interessada em esclarecer aspectos que caracterizariam seu texto de forma rígida, e sim em fazer uso da falta de limites e da liberdade que a escrita proporciona, inclusive de dar nome à autora da história, nesse caso, muito inteligentemente, contada pela personagem-título.

Não é muito diferente do que se especula em relação a Elena Ferrante, autora best-seller que faz pleno uso do direito ao anonimato, gerando uma curiosidade quase incessante sobre sua verdadeira identidade. No entanto, como Brontë, a criadora da personagem Ferrante perturba a noção de autoria quando escreve em nome de outra, em looping, sobre a mesma geografia, as mesmas dificuldades, as mesmas relações e o mesmo eu. Como se suas obsessões e repetições fossem tão claras que tivessem sido elaboradas a partir do distanciamento entre quem conta — a dona da história — e quem reconta — a personagem narradora, que pode ou não ser a autora. 

Esse aspecto pouco ingênuo de fazer uso do esconderijo da escrita e criar ficções não me parece ter como objetivo a perversidade de confundir, deliberadamente, o leitor. 

A narrativa ficcional, seja a de si, seja a do outro, nunca irá nos proporcionar o que a arte rejeita: certeza

O processo me sugere algo mais simples: na maior parte das experiências criativas e artísticas, o escritor não tem condições de dizer a verdade porque a verdade já passou. Tudo o que se conta é mentira porque o contar é um processo já distanciado, naturalmente, do acontecimento. Pode ser que esteja aí o grande segredo de um texto literário: a compreensão, por parte do autor, de que ele não tem qualquer compromisso com os fatos, e isso não se deve à má-fé, e sim à impossibilidade de reviver o tempo passado, até mesmo o verbal. Afinal, quando Ivo viu a uva, eu não posso ter certeza se eu estava lá. Para contar que Ivo viu a uva, preciso me lembrar, e do que eu me lembro já me esqueci.

Esse jogo caleidoscópico de palavras e conceitos do qual o escritor é capaz remete a outra autora que explorou profundamente a ideia da liberdade absoluta na criação literária. Quando Virginia Woolf escreve Orlando e põe como subtítulo uma biografia, ela, no início do século 20, desafia a convenção do meio intelectual propondo uma desordem na forma e estrutura. Uma biografia de uma personagem que, além de viver por séculos, troca de gênero traz muito mais confusão ao pensamento tradicional que despreza o absurdo, e muito mais deleite ao leitor livre — saber ou não se a obra foi baseada na vida e na personalidade de Vita Sackville-West não interessa. É uma informação diminuta, reducionista e supérflua.

A narrativa ficcional, seja a escrita de si, seja a do outro, seja a de um tempo, se bem composta, nunca irá nos proporcionar o que a arte rejeita: certeza. 

Espelho meu

Não é coincidência que a autoficção tenha se desenvolvido num período pós-freudiano, quando a psicanálise já se firmava com credibilidade. As questões do eu passaram a ser tão relevantes e centrais quanto os elementos estruturais que caracterizam o romance do século 19. Também não é aleatória a coincidência da escrita de si ganhar força em concomitância ao avanço do movimento feminista como corrente política. 

Histórica e comprovadamente diminuída, a escrita feita por mulheres vive um bom momento. A publicação, cada vez maior, de autoras que narram sobre si acompanha o deslocamento de uma disseminação mais ampla de poder, inclusive e principalmente no que se refere às letras e à literatura. Passa a ser cada vez mais publicada uma literatura que narra a escrita de si das mulheres, e sobre questões que foram e são, de maneira paternalista, supostas como irrelevantes ou frágeis, literariamente falando. 

A publicação cada vez maior de escritoras que narram sobre si acompanha o movimento feminista

Em Um teto todo seu, Virginia Woolf nos diz que a representação feminina na literatura é tradicionalmente feita sob o olhar e a descrição do sujeito masculino — então um espaço mais generoso deve ser aberto para que a mulher possa se narrar, narrar seu corpo e sua mente, aquilo que recorta quando olha para o espelho. 

Não me parece sustentável uma representação feminina, nem de imagem nem de voz, que seja construída pelo imaginário masculino, como tem sido o caso nas artes plásticas, nas tragédias gregas, no cânone, no cinema. No entanto, apenas contestar tais representações não nos basta. A mulher passa, então, a se escrever. A escrita de si é uma escrita política que se coloca como oposição à tradição opressora masculina no acesso às artes, em particular à literatura.

Quando Hélène Cixous invoca, em O riso da Medusa, que as mulheres se escrevam, ela fala sobre a rejeição ao falocentrismo que diminuiu e oprime toda e qualquer tentativa da mulher de tomar a palavra para si. A autora pede que as mulheres escrevam sobre seu corpo:

É a invenção de uma escrita nova, rebelde que, quando chegar o momento da libertação, lhe permitirá realizar as rupturas e as transformações indispensáveis na história.

Talvez o desconforto com o termo autoficção — ainda que facilmente identificado entre escritores homens, mas não só —, coincida com o crescente acesso à publicação de autoras que narram o que querem ler e, como consequência, vão escrever, entre outros temas, finalmente, sobre si. 

A propósito, é importante ressaltar que a escrita de si não me parece ter qualquer relação com o suposto lugar de fala, termo muito debatido e, espero, já compreendido, no campo literário, como plenamente inútil. Assim como escrever sobre si ou a partir de si requer uma voz narrativa, a autoficção, assim como o narrador, pode e deve perder os pudores, no sentido de recusar censuras, amarras e orientações sobre quem pode dizer o quê. A voz narrativa, associada ao risco da estrutura e da linguagem propostas, é um dos elementos que constroem a literariedade de um texto. O pacto, se fosse existir algum, poderia ser o de recusar por completo qualquer limite à criação do texto e das personagens — isso inclui o autor — e às vozes que narram.

Quando Annie Ernaux experimenta com um relato que parte de um tempo marcado, a década de 60, e de um ponto tão íntimo, como um aborto, para falar de toda uma classe, de uma família e do patriarcado, ela parte, ainda assim, de um aborto. Não deveria nos interessar tanto se a experiência da narradora é a mesma da autora, afinal, essa obsessão em delinear verdades e fatos não acrescenta qualquer valor à experiência artística, nem para quem cria nem para quem aprecia. Ainda assim, vemo-nos enrolados em tramas sobre ser ou não verdade um livro de autoficção.

A presença sólida das redes sociais é um fator que motiva esse debate. Se por um lado as autoras estão disponíveis e a uma dm de distância, é a especulação e a incerteza sobre a narrativa que alimentam o interesse dos leitores. A existência dessa cultura das redes é também um possível motivo para que a autoficção seja mal recebida por autores e críticos, já que sugere uma viagem egocêntrica e que só interessa a si, como o termo “egoliteratura”, de Philippe Forest, sugere tão marcadamente.

Sobre o que é?

Contar um episódio da própria vida não deveria ser, em teoria, tarefa impossível. Bastaria, afinal, ter uma história, algo tão democrático quanto ter um nome. Dentro dessa ingenuidade escapa o valor da escrita como literário. Afinal, quando alguém diz que sua vida daria um livro, provavelmente não é o caso. A história de si que interessa na literatura deriva frequentemente do banal ou de um recorte específico e encontra, a partir daí, caminhos para a construção desse eu que está na autoficção. A grandeza, quando gratuita, não anuncia uma boa peça literária — pelo contrário, parte da contramão, da viagem do ego, de uma pretensão de imensa obviedade, e costuma dar errado. Muito frequentemente, narrar uma vida de modo biográfico se origina de grandes feitos e checagem de fatos. Já a mentira, a invenção como recurso na escrita, orienta o trabalho artístico que não tem compromisso documental, libertando, assim, o autor, que se torna isento de toda e qualquer justificativa. 

Quando uma das protagonistas de um conto de Lucia Berlin diz: “Eu exagero muito. Faço confusão entre a realidade e a ficção, mas nunca minto”, ela diz a verdade. Mas a frase é mentirosa, e não por razões morais, e sim por ser impossível. A incapacidade de dizer a verdade num texto surge em virtude da impossibilidade de a escrita literária ser um relato de valor documental. Um ótimo exemplo dessa fluidez entre categorias é Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus. Apesar de o subtítulo — Diário de uma favelada — supor um peso documental, a narrativa de Carolina se desdobra notadamente em uma espécie de representação, jogo ou performance do eu narrador como proposta estética e que mantém o leitor hesitante ao especular o viés documental do texto. Eis o experimento literário bem-sucedido.

Se no livro de Carolina quem narra é a primeira pessoa, em muitos dos contos de Lucia Berlin uma personagem em terceira pessoa conta a história. O curioso é que a maioria das narradoras se chama Lucia. Esse aspecto me traz à reflexão o disfarce do escritor. Ferrante e Brontë mascaram identidades, performances, personagens num caleidoscópio fascinante de inversão de fatos — nesses textos, a identificação, não de quem narra, e sim de quem vive as histórias, é um elemento crucial a ser considerado. Afinal, não é só o narrador uma personagem; o nome do autor não deixa de ser um jogo, já que na arte literária a performance está sempre presente.

Ainda nos vemos enrolados em tramas sobre ser ou não verdade um livro de autoficção

A busca permanente do leitor em trazer à tona uma realidade, como se agrupasse fatos e juntasse peças numa investigação, pode ser o resultado da combinação dessa escrita pós-freudiana alimentada à exaustão pelas redes sociais e o acesso cada vez mais frequente dos leitores aos autores.

Em termos de escrita de si, tanto o aborto em Ernaux como a fome em Carolina são autoficção, já que são fabulados a partir da memória ou da performance. Ainda assim, quem poderá ter essa certeza? Menos certeza eu teria se a própria autora esclarecesse sua obra. Aí sim, entraríamos numa espécie de metainvenção bastante interessante.

Um termo variante da autoficção pode ser escrevivência, proposta identificada na obra de Conceição Evaristo. A autora que, em um texto para o Jornal da USP, rejeita o termo autoficção por compreendê-lo fechado a um só eu, defende sua escrita como a narrativa do eu coletivo que carrega traços contemporâneos pautados em referências históricas. São vivências que ultrapassam o núcleo íntimo e pessoal para abordar experiências de determinado grupo. No entanto, quando a autora propõe uma escrita que acessa incômodos e identificação, curiosamente acaba por comover intimamente o leitor, parte ou não desse coletivo. Talvez seja a de Conceição Evaristo uma escrita a partir de si, e não necessariamente a escrita de si.

Baseado em fatos reais

A preocupação do leitor com a verdade dos fatos me parece tão absurda quanto acreditar que um livro é baseado na realidade. Quando li O sol é para todos, de Harper Lee, eu me lembro de me deter à informação de que tinha sido livremente baseado em fatos. “Baseado” e “livremente” são termos tão soltos quanto desnecessários. O que mudava ao ter a informação da possível veracidade do livro era a especulação de tentar sentir na pele o que vivem as personagens. Certamente, uma tentativa pequena de exercitar empatia, mas que não interferia na apreciação da narrativa da obra como arte. A abrangência da expressão fatos reais abarca não só todo o texto, como todo o discurso. A biografia, o romance, a autobiografia e a autoficção, ou seja, todo texto criativo e autoral está fundado no recontar, na representação das palavras, na performance. 

Um dos filmes mais interessantes que vi este ano foi Anatomia de uma queda, da diretora francesa Justine Triet. É um longa sobre muita coisa, mas, acima de tudo, sobre linguagem. É flagrante como o recontar de uma memória que pretende ser fato e verdade se impõe com falhas gigantescas na impossibilidade de buscar no tempo passado uma verdade absoluta. Quando a protagonista, uma escritora, precisa contar à polícia, ao advogado e ao tribunal o que gostaria de dizer que aconteceu depois da morte do marido, ela se vê envolvida em várias narrativas, em diversas línguas, todas autoficcionais, nenhuma delas confiável. É excelente a cena no tribunal em que a acusação faz uso dos livros da autora para tentar condená-la, lendo pequenos trechos descontextualizados como se pudessem remendar os fios soltos do discurso, da narrativa e da memória dos envolvidos. 

Todo texto criativo e autoral está fundado no recontar, na representação das palavras

Essa busca pela vida que transborda na arte é, ainda que compreensível, peculiar. A poesia de Sylvia Plath, por exemplo, com sua etiqueta confessional, incita no leitor o desejo de arrancar dos poemas revelações diretas e claras. Considerando que Plath escreveu muitas cartas e diários, poderia ser esse um exercício literário mais interessante com atenção particular e total à estética proposta nos poemas. Mas há um desdobramento: quem nos garante, ou melhor, quem busca a verdade quando entende que foi Sylvia Plath quem escreveu as cartas e diários? Não seria a composição de cartas e diários também uma performance do eu? Não seriam as cartas e diários de Woolf um exercício muito inteligente de escrita criativa entre personagem, linguagem e tempo narrativo? Talvez seja, afinal de contas, aconselhável compreender que o escritor que assina textos ficcionais vende a alma ao diabo, e para a subversão não há limites. Querer saber se um texto de autoficção é real é o mesmo que pedir nas provas que o aluno discorra sobre o que o escritor quis dizer com determinada passagem. O autor, de todos os leitores, é o que provavelmente menos sabe, já que o que quis dizer ele não disse, escreveu. 

Tudo tem autoria e tudo tem nisso uma subversão. A Bíblia, por exemplo, deu no que deu, ainda que tenha sido a palavra de Deus. 

Quem escreveu esse texto

Nara Vidal

Escritora, é autora de Mapas para desaparecer (Faria e Silva), Eva (Todavia) e Shakespearianas: As mulheres em Shakespeare (Relicário).