Crítica Literária,

Confissões embriagadas

Correspondência ajuda a iluminar complexidade da obra de Charles Bukowski, trinta anos depois de sua morte

01jan2024

Quem já batucou bêbado sobre teclados sabe da sinceridade que pode arrancar desse free jazz. Quem derrubou muitos copos com o desgovernado carro da máquina de escrever tem noção da busca por uma frase que solidifique o desespero noturno. Pouco importa que a ressaca doa nos ossos qual uma Chikungunya existencialista ou dengue sartreana. Vale cada vogal perfurada no papel ofício pelos caracteres tipográficos.


Sobre a escrita, de Charles Bukowski

Vale cada linha do reality epistolar de Charles Bukowski nessas mensagens de náufrago endereçadas a editores, amigos e escritores entre 1945 e 1993. “Eu tenho setenta agora, mas enquanto o vinho tinto fluir e a máquina funcionar, tudo bem. Foi um bom show para mim agora que escrevo contra os obstáculos de alguma fama e algum dinheiro — e aqueles passos que se aproximam daquela coisa com a placa de pare”, confessa na carta a Henry Hughes, editor-chefe da revista literária Sycamore Review, em 13 de setembro de 1990.

Sobre a escrita é um guia para entender como foi construída a mitologia do Velho Safado. Um escritor e poeta que sobreviveu de subempregos e praticamente mendigou para publicar os seus primeiros contos. Uma mosca de bar. Um santo beberrão que encarnava o modo de vida rock’n’roll, embora usasse apenas a música clássica do rádio para datilografar o seu fabulário de ereções, ejaculações e exibicionismos.

Quase todas manchadas de cerveja ou vinho, as cartas ajudam a decifrar esse canalha desesperado

No momento em que a HarperCollins Brasil republica as obras completas do autor, em novas traduções e textos que iluminam a releitura bukowskiana, o livro das cartas revela a insistência de um homem atormentado entre a ideia de ser um escritor profissional e ao mesmo tempo viver como se o mundo fosse acabar na próxima ressaca. Nos intervalos desse tsunami existencial, mais uma rejeição de alguma revista fuleira ou o silêncio de uma editora diante de um maço de contos ou poemas.

Para dispersar o alto teor melancólico, temos algumas missivas de um Buk entusiasmado e elétrico no amor correspondido com uns caras da pesada. Abra as cartas para o poeta e editor Lawrence Ferlinghetti, datadas de 1971, e você verá o entusiasmo quase juvenil: “Obrigado pelo cartão. Estou todo animado com o livro, yay! Não consegui dormir noite passada”. E mais adiante: “Desculpe meu entusiasmo. Mas isso vai ser um estouro, isso vai ser o fim da Lua”.

Bukowski, que havia sido carteiro, também vibra ao se corresponder com o seu amado John Fante, como declara, em 2 de dezembro de 1979: 

Foi bom ouvir o final do seu romance pelo telefone; foi mais Fante de novo, coisa de ponta, como sempre. Me animou pra cacete saber que você ainda estava fazendo isso. Você foi meu primeiro estímulo pra começar e ainda está me acertando de novo depois de todos esses anos.

Ele admirava também Henry Miller, mas em algumas correspondências o ex-carteiro chega a lamber os selos da discórdia ao endereçar respostas atravessadas ao autor de Sexus, Plexus e Nexus. Miller havia sugerido que Bukowski diminuísse a bebedeira, no que recebeu uma resposta em embriagadas minúsculas:

eu estava bêbado quando escrevi a carta, se é que pode ser uma desculpa. quanto a beber, se mói ou ferra com a minha criatividade, então que pena. eu preciso de mais para viver minuto a minuto do que para ser algum tipo de artista criativo; o que quero dizer é que preciso de algo para seguir em frente ou fico para trás, sou covarde, não quero passar pelas portas.

Sobre a escrita tem uma tradução muito cuidadosa de Isadora Sinay. Ela situa o leitor com notas e referências para que não fique boiando nos bastidores editoriais. A escritora Nara Vidal, em posfácio sem passapanismo, trata sobre a forma como o Velho Safado retrata a mulher na sua prosa.

“Seus primeiros trabalhos trazem uma abundância de clichês misóginos e machistas típicos da imaturidade humana e artística”, escreve Vidal. “No entanto, suas personagens e sua narrativa desenvolvem, com o tempo, grande complexidade, ambivalência, refinamento, sem deixar de usar como linguagem a clareza das palavras.”

Coube a Luiz Antonio de Assis Brasil, o homem da mais antiga oficina de criação literária do país, firmar que o monge bêbado deixou uma obra de homem culto e tem muito a nos ensinar na matéria da escrita. Bukowski sabia usar muito bem uma das maiores aliadas da autocrítica de um autor: a lixeira. Descartava, sem dó, parte da sua vasta produção de poemas.

Reabilitação literária

Cancelado por muitas e muitos leitores — sob acusação de misoginia, sobretudo —, o velho Buk experimenta, in memorian, uma certa reabilitação literária e a conquista de novos fãs, quase trinta anos depois da sua morte.

Trabalhos editoriais como os relançamentos têm contribuído nessa tarefa. “O que uma tradutora feminista faz ao traduzir Charles Bukowski? Essa é uma pergunta que me assombra desde que aceitei o projeto de traduzir Factótum (1975)”, reflete Emanuela Siqueira em nota ao final do livro. Ela dá a pista: “Muito do que acontece em Factótum é difícil de digerir, assim como de traduzir. Porém, não deixa de ser um recorte sobre muitos personagens que seguem existindo não apenas no imaginário”.

Diante disso, afirma que uma feminista deve traduzir Bukowski emulando a voz de Henry Chinaski, o personagem alter ego, como se ele falasse português brasileiro, evidenciando o projeto de escrita de um autor que é lido desde a década de 40, quando começou a ter seus contos publicados, e que segue sendo lido, em especial por jovens em busca de leituras contraculturais e debochadas.

“Que Charles Bukowski possa ser lido sem atenuações ou censuras, para que seja pensado em toda a difícil complexidade dele, ampliando as discussões”, recomenda a pesquisadora. Complexidade é o que não falta em Sobre a escrita. As cartas do ex-carteiro, quase todas manchadas de cerveja ou vinho tinto, ajudam a decifrar esse canalha desesperado cujas bebedeiras são tão famosas quanto as obras completas. Esse comportamento sempre foi muito repetido por candidatos a escritor em todo o mundo. Esquecem os imitadores que Bukowski foi um bêbado — isso não significa que todo bêbado caído por aí seja um Bukowski.

Quem escreveu esse texto

Xico Sá

Escritor, prepara o lançamento de Você é o que lê (Todavia), com Gregório Duvivier e Maria Ribeiro.