Literatura,

Sófocles e faroeste

Único romance e última obra escrita por Sam Shepard antes de morrer tem traços autobiográficos e dramatúrgicos

20nov2018 | Edição #11 mai.2018

Sam Shepard estabeleceu com Wim Wenders uma de suas melhores parcerias, dando origem à obra-prima Paris, Texas (1984). No filme, um homem vaga pela paisagem desértica norte-americana. Ao fugir da conturbada história familiar, reencontra o filho e com ele inicia a comovente busca por si mesmo.

Como seu personagem, Shepard também saiu em longa jornada e topou com muita gente pelo caminho. Filho de um ex-combatente da Segunda Guerra, nasceu em Illinois, mas foi, ainda bem jovem, com a família, para a Califórnia, não a das praias, mas sim para a Califórnia interiorana, rancheira, onde encontrou o deserto de Mojave, paisagem que marcaria profundamente sua obra. 

No fim dos anos 1960, o jovem com pinta de cowboy já estava do outro lado do país, no circuito off-Broadway, escrevendo peças e roteiros para diretores como Antonioni e Robert Frank. Ou ainda na companhia de Patti Smith com quem escreveu uma peça que ajudou a apresentar a cantora à cena nova-iorquina.

Mais tarde, Bob Dylan convidou Shepard para sair em turnê. Tal parceria virou filme (Renaldo & Clara) e, depois, canção (“Brownsville Girl”). Isso sem falar da carreira de ator em que se destacam filmes como Cinzas no paraíso (1978), de Terrence Malick, e Os eleitos (1983), de Philip Kaufman, pelo qual foi indicado ao Oscar de ator coadjuvante.

Em meio a tanta agitação, Shepard foi escrevendo peças de grande força que lhe valeram um Pulitzer. Seu teatro dialoga tanto com a literatura beat de que foi contemporâneo, quanto com a tradição da tragédia grega, em especial com a predileção do gênero em abordar o caráter destrutivo das famílias.

Com um olho em Sófocles e outro no faroeste, o dramaturgo localizou a força de sua obra menos no universo urbano do que na travessia das paisagens áridas dos Estados Unidos. Trabalho que pode ser encarado como valiosa leitura de um país inóspito, porque a aridez vem tanto da paisagem quanto das relações afetivas, seja entre pais e filhos, seja entre irmãos. Nesse sentido, vale conferir algumas peças como Oeste verdadeiro e Mente mentira, editadas em livro no Brasil.

Pouco antes de morrer, Shepard decidiu publicar um romance, gênero no qual nunca havia se aventurado. Aqui de dentro dá a ver a vida de um personagem autor-ator. E essa identificação fez com que a narrativa ganhasse ares de livro de memórias, espécie de acerto de contas consigo mesmo e, ao que parece, com a lembrança do pai. 

Pai e filho

Num perfil publicado em 2003 pelo The Guardian, a convivência entre o pai e ele é descrita como conturbada. Nas palavras da irmã de Shepard: “Havia muito confronto entre os dois, e a coisa sempre estourava do lado do Sam”. No mesmo texto, o próprio Shepard afirma que o pai teve uma juventude difícil e que, na vida adulta, além de ter pavio curto, acabou se tornando um “alcoólatra aplicado”.

O certo é que, nas páginas de Aqui de dentro, grande parte do conflito mora justo no áspero convívio do narrador com o pai. A relação entre eles, aliás, chega mesmo a evocar o edipiano enfrentamento entre pai e filho.

No prefácio, Patti Smith fala, de modo epigramático, sobre a arisca semelhança entre autor e personagem: “É bem ele, mais ou menos ele, nada a ver com ele”. Já Michiko Kakutani, do New York Times, escreve que o romance, apesar do tom menor, tem algo de Oito e meio, de Fellini, em suas ligações entre sonho e uma realidade pintada com tintas autobiográficas.

O livro é composto por capítulos curtos que seguem cronologia própria. Com idas e vindas entre presente e passado, o texto lança mão de, pelo menos, três planos narrativos que avançam em paralelo. Todos são narrados pelo mesmo personagem em fases diferentes da vida, formando um imbricado mosaico ficcional.

O primeiro plano traz o ponto de vista de um adolescente que mora com o pai e acaba se envolvendo com a jovem amante deste. O segundo apresenta um casal que, depois de anos, se divorcia. Já o terceiro narra a relação entre um homem mais velho e uma garota que o chantageia, ameaçando publicar transcrições de conversas telefônicas nas quais os dois falam de sexo.

A divisão não é estanque e os planos narrativos às vezes se chocam. A aventura amorosa entre o pai, veterano de guerra, e a moça, que tem quase a mesma idade do filho-narrador, tem ares de tragédia. E é improvável não ver essa história se espelhando na outra, na qual o narrador — agora com quase setenta anos — relaciona-se com uma garota de vinte.

Quanto mais o leitor é empurrado para um beco sem saída, mais alguns movimentos intensificam-se. Por exemplo, o narrador aos poucos mergulha no papel de ator: “Só depois de repetir as frases de várias maneiras em voz alta é que o personagem começa a parecer como um negativo no banho de revelação”, diz ele. A imersão é tão duradoura que sua jovem amante comenta: “Eu não sabia bem se você estava atuando ou não”.

Com isso, é como se Shepard inventasse uma curiosa modalidade narrativa, espécie de romance de ator. Nada a ver com bastidores ou fofocas de Hollywood, mas sim com algo bem mais decisivo: a autorreflexão sobre o trabalho do ator se confunde aqui, de forma perspicaz, com a autorreflexão sobre o trabalho de escritor. Afinal de contas, ambos jogam com os limites frágeis entre criador e criatura.

Um segundo movimento que ganha corpo ao longo do livro é o avanço do registro dramático sobre o narrativo. O ritmo teatral de Shepard se apodera da narração, mas sem subjugá-la por inteiro. Até porque o romance é este gênero que, embora tenha pacto com a unidade, aceita bem a diferença.

Assim, desde o início, há capítulos inteiramente compostos por diálogos. Ao fim, essa estrutura fica ainda mais evidente e tal presença dramática se dá de modo tão fluente que, ao lado das vozes, surgem rubricas à maneira de indicações cênicas.

Um terceiro e decisivo movimento é a metamorfose que, pouco a pouco, o pai sofre. De sedutor de moças, ele se torna um homem “cutucando as cicatrizes dos estilhaços de metralhadora na nuca e olhando para o nada na varanda da frente”. É quando sua figura começa a encolher até se tornar, literalmente, um boneco em miniatura. Mas a mudança de estatura está longe de apaziguar as memórias do narrador. Ao contrário, mais do que nunca, o pai passa a assombrar o filho.

Tal movimentação fantasmática povoa com enorme silêncio os espaços do romance: “Matos secos, plástico preto preso neles, esvoaçando e tentando se soltar. Uma corrente velha cercando tudo isso”. E é então, de dentro desse enclausurado deserto, que Shepard, ouvindo o barulho do vento, por fim nos pergunta: “Que chance tem a beleza de entrar aqui?”.

Quem escreveu esse texto

Leonardo Gandolfi

Professor de literatura portuguesa da Unifesp, é autor de Escala Richter (7letras).

Matéria publicada na edição impressa #11 mai.2018 em junho de 2018.