Literatura,

O vagar da escrita

Entre cogumelos e jukebox, o ganhador do Nobel Peter Handke realiza em seus ensaios um insólito elogio ao cansaço

24set2021 | Edição #50

Num ensaio que dedicou a Tucídides, Peter Handke descreve um freixo de duzentos anos. Suas flores surgem em cachos, que brotam antes das folhas. Diante do freixo, Handke comove-se com um ato simples, extraordinário: ele está meramente presente. Seu encontro com essa árvore ocorreu no dia 2 de novembro de 1989. Ele tentou pensar em todos os mortos, em tantos que foram assassinados, mas não conseguiu. Era uma árvore solitária, que lhe ofertou a fresta de um refúgio.

Raros escritores exploram os dilemas das fronteiras tão intensamente quanto Handke. São bordas físicas, humanas, de linguagens. Handke poderia, no ensaio, alcançar uma toada confessional e contar das emoções que lhe vieram naquele novembro, quando caiu o Muro de Berlim. Reticente, ele dialoga com um ente vegetal cujo fluxo de vida contém e extravasa sua existência humana. 

A carreira de Handke nasce de uma polêmica sobre a impotência descritiva da literatura alemã do Gruppe 47. Irrequieto, o jovem Handke traz experimentos de performance, mídia, oralidades e jogos de linguagem à la Wittgenstein na prosa, na poesia, no teatro. A sisuda literatura alemã delineava seu primeiro sopro pop, com doses de melancolia, flertes com o rock e os road movies.  Até meados dos anos 70 Handke era sinônimo de vanguarda e experimentação literária. 

Fábula das coisas

Escrito em Sória, na Espanha, o Ensaio sobre a jukebox conota tempo a uma procura, apressa-se, vagarosamente, e segue atrás de um objeto remoto, sem uso, descartado. O ensaio ressurge com um anseio de resguardar a fábula das coisas. Oscilando entre o Alasca e a Espanha, Handke repara como os discos no jukebox combinam selos com a caligrafia das músicas prediletas. Essa máquina da experiência musical, tão cara ao século 20, ressurge, na sua descrição, nas brechas de sua aura arqueológica.

Errante, mas com curvas precisas, Handke faz da viagem um constante ato de reinventar e redescobrir o apuro da sua escrita. Com ele, o ensaio aglutina algo de Montaigne, pela centralidade da percepção de um sujeito. Handke também espia saídas dessas tradições reflexivas. O escritor austríaco se singulariza por fazer do ensaio um percurso que permite ver novamente algo antes entrevado num espectro inominável. O Versuch, de raiz alemã, que se traduz como ensaio, também possui um lado prático, que implica esforço, busca e encontro. 

Ainda não traduzido, O mestre de Saint-Victoire é um ensaio primoroso nesse intuito de despertar imagens únicas. Instigado de ver a montanha Sainte-Victoire, obsessão da pintura de Paul Cézanne, “mestre” a quem o ensaio é dedicado, Handke queria que suas palavras reverberassem como as pinceladas do pintor francês.

Os temas que pincelam os quatro livros anunciam formas depuradas, alheias à correria das metrópoles

Esse é um intuito bem diferente do metaensaio, que faz comentários sobre escritores. Com Handke, o ensaio pisa num vagar da escrita. No Ensaio sobre o louco por cogumelos, Handke transforma o catar esses pequenos seres vivos num hábito de interação com a beleza das palavras e as delicadezas ofertadas por moitas que surgem no caminho. Sua mania por procurar cogumelos seria uma forma de inventar lugares efêmeros, de coabitar palavras e champignons campestres.

Se os cogumelos e o jukebox são acontecimentos espaciais que levam ao deslocamento físico, o Ensaio sobre o dia exitoso e o Ensaio sobre o cansaço apontam para entes fugidios. São breves estalos, amalgamados no recorte temporal de um sol que se levanta e que se põe. No dia exitoso, “acontece de uma ponta de cigarro rolar na sarjeta, de uma xícara estar soltando fumaça sobre um toco de árvore, de um dos bancos da igreja sombria ficar claro de sol”. O segredo do dia exitoso é se sensibilizar diante de acontecimentos que não vemos como acontecimentos, um fiapo que desfila, um irrisório lampejo, mascarado de dia. 

Misto de fastio e de baixar as guardas da percepção, Ensaio sobre o cansaço culmina numa rara sensação de lugar. Handke conta de uma longa viagem que fez entre o Alasca e a Europa, das suas pausas nos aeroportos e de como passou a ver alguns locais por outro prisma, tamanha era a sua exaustão. Inspirado numa leitura poética de Heidegger, realiza um insólito elogio ao cansaço. Esse fenômeno permite que o sujeito saia de si, se abra ao mundo e esteja tão pleno e presente como um velho freixo; para que habite, na duração do cansaço, um espaço antes imperceptível. 

Na escrita de Handke, a imagem só ocorre quando fora do sujeito, distante das artimanhas literárias. Num cartão-postal que enviou a Handke, W.G. Sebald agradecia por A repetição. Admirador e estudioso de Handke, o autor de Austerlitz se encantou com a luz da sua prosa, com os raios luminosos que surgiram diante das suas palavras. O cartão- -postal, num curioso detalhe, tinha a imagem de Um estudo de Van Gogh, feito por Francis Bacon — que retrata a verve andarilha do pintor holandês, carregando suas telas nas costas. 

Laureado com o Nobel de 2019, Handke voltou a gerar polêmicas, ancoradas no seu infeliz e inaceitável apoio político a Slobodan Milosevic. A maioria dos ensaios foi escrita antes desse episódio e aposta numa duração longeva, num respiro supra-histórico, desafiando modismos e toda uma cultura do cancelamento, que incide com mais força nos círculos literários. Se às vezes um dia é muito longo, diante da brevidade da vida — como ele enaltece, Handke aspira a uma escrita que se estica e se retrai; que se sabe efêmera, e se quer breve, e dura enquanto pulsa, no ritmo da sua autotransformação. Seus ensaios sussurram um convite para espreitar os enigmáticos segundos de incandescência do verbo.

Quem escreveu esse texto

Pablo Gonçalo

É professor adjunto da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB).

Matéria publicada na edição impressa #50 em agosto de 2021.