Crítica Literária,

Ensaios de toda uma vida

Antologia de textos críticos de Silviano Santiago vincula biografia ao seu trabalho intelectual

11dez2023

É com uma apresentação tão fúnebre quanto provocativa que começa Grafias de vida — a morte, mais recente livro de Silviano Santiago. Assim como o título que inscreve a morte no domínio da vida, a apresentação se instala nessa espécie de paradoxo, em que o autor se ressente do envelhecimento, evocando a imagem da penca de bananas apodrecendo na fruteira, na iminência de ser jogada no lixo, e, simultaneamente, alegra-se ao se deparar com tudo que pôde viver, num “excesso inesperado de tempo”. Isso nos coloca diante de uma chave importante para a apreciação dos ensaios: solicita uma leitura atenta dos caminhos da vida, cujo saldo aparece nas páginas marcadas pela passagem dos anos, num estranhamento sempre curioso com o presente, mas que também é elaborado por sua trajetória marcada pelo acúmulo crítico.


Em Grafias de vida — a morte, Silviano Santiago destaca exemplos desviantes como Machado de Assis, Guimarães Rosa e Sousândrade, que problematizam aspectos da constituição da sociedade brasileira

Uma apresentação tão autobiográfica contrasta com a epígrafe, um texto de Michel Foucault que anuncia a célebre fórmula da morte do autor. Assim, a noção de grafia de vida, do título da coletânea, não corresponde propriamente a um conceito e, por isso, desenvolve-se no encontro com temas, movimentos e autores, como em Fisiologia da composição (2020) e no posfácio à edição de Orlando: Uma biografia, de Virginia Woolf, publicado pela editora Autêntica em 2015.

A partir dessa alegria fúnebre, Santiago emoldura os ensaios reunidos no livro, como se indicasse o vínculo biográfico irresistível que se instaura no trabalho intelectual, aproximando produções antigas e recentes, num empenho de avaliação de sua própria obra como ficcionista. Os textos não se restringem simplesmente ao escrutínio de autores importantes da nossa tradição literária, como também se debruçam sobre obras internacionais, como a do mexicano José Revueltas e a da alemã Christa Wolf, além das produções que se localizam fora do campo estritamente ficcional, como o jornalismo cultural de Joan Didion e as apresentações musicais de Ney Matogrosso. Ou ainda, em aproximações inesperadas, como entre o geógrafo Milton Santos e o músico Marvin Gaye. Dessa maneira, a linhagem construída minuciosamente por Santiago se mostra erigida a partir da lógica da simultaneidade e do anacronismo.

É nesse caminho de fricção entre textos heterogêneos e na elaboração de um ambiente talhado por sua grafia de vida que o autor investiga a gênese do seu Menino sem passado (2021), “uma prosa autobiográfica de intenção memorialista”. Santiago descreve como a leitura de Hannah Arendt precipitou a escrita das próprias memórias de infância, como se a imaginação literária caminhasse do texto da autora para o universo provinciano, posicionando as lembranças de Santiago numa gangorra entre o passado e o futuro, entre o espaço semirrural mineiro e as cidades cosmopolitas. Essa pequena amostra já indica seu esforço de autocrítica, que se desdobra na retomada dos temas de seu Em liberdade (1981), romance que lhe garantiu projeção como ficcionista, publicado ainda durante a ditadura militar, que trata das questões do encarceramento e da prisão política.

Exemplos desviantes

Grafias de vida — a morte parte do questionamento do cânone literário e da dificuldade de englobar toda a produção nacional em uma só tradição. O autor advoga em favor da noção de diferença para pensar as produções artísticas, sem as enclausurar em uma única história cultural, destacando exemplos desviantes como Machado de Assis, Guimarães Rosa e Sousândrade, autores que problematizam aspectos da constituição da sociedade brasileira sem cair no enfoque nacionalista convencional. 

Para além dos três ensaios finais, que tratam diretamente da obra de Mário de Andrade, outro ensaio, no começo do livro, retoma uma aproximação intempestiva entre Mário e Machado, algo já experimentado no romance Machado (2016). A partir de uma glosa acerca dos autores, Santiago aponta o uso de acontecimentos históricos, lidos sociologicamente por parte da crítica, mas tomados, no texto, como dotados de uma formulação estética própria, que suplementa o dado simplesmente histórico. Quer dizer, o Brasil escravocrata de Machado e a modernização da cidade de São Paulo de Mário são sobrepostos em chave comparatista, a partir de “deslocamentos acronológicos”, confrontando geografias e tempos históricos, de modo a fazer do leitor uma espécie de coautor. Os diferentes livros são valorizados não simplesmente pela encenação dos fatos históricos concretos, como também pela ressonância prospectiva e retrospectiva dos eventos.

O escritor ensaia diversas aproximações do que se conhece como o caráter indomável de seus textos

O método se repete ao longo do volume, como na análise de Satíricon (60 d.C.), de Petrônio, escrito no declínio do Império Romano, e A alma encantadora das ruas (1908), de João do Rio, publicado quando a então capital federal escondia a permanência das desigualdades sociais e do autoritarismo das elites medíocres numa aparência falsa de modernização. 

É desse mesmo modo que o livro Pelo sertão (1898), de Afonso Arinos, é mobilizado, tendo seus dois principais símbolos como representativos “[d]a soberania e [d]a decadência da vida” mineira no campo e na cidade. O livro oitocentista logo conduz Santiago às obras de Lúcio Cardoso e Guimarães Rosa, ambos escritores contemporâneos do governo de Juscelino Kubitschek, ecoando os símbolos do século 19 nos textos do século 20.

Assim, a partir das diversas linhas criativas de método e análise, Santiago apresenta a experiência do tempo excessivo como condição “que permite a leitura e a escrita dessas grafias de vida”. O livro é composto por ensaios que revelam grande intimidade com a vida cultural contemporânea, que, por sua vez, contrasta com a embocadura dos textos formadores, ligados à tradição brasileira e internacional. Ao tentar prever as possíveis reações dos leitores, ainda na apresentação do livro, o autor ensaia diversas aproximações do que se conhece como o caráter indomável de seus textos, culminando na descrição ambígua das contaminações propostas. “Entre o sacrifício e o jogo, […] entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão”, como escreve ao final de “O entre-lugar do discurso latino-americano”, surgem os sentidos inesperados inscritos em grafias de vida. 

Quem escreveu esse texto

Gabriel Martins da Silva