Cinema,
Lado a lado
Inspirado em romance de Sigrid Nunez, novo filme de Pedro Almodóvar traduz de forma inventiva ideias e sentimentos do texto original
30out2024 • Atualizado em: 06nov2024Uma escritora descobre que sua grande amiga está com câncer, internada no hospital para tratamento. Decide visitá-la e é recebida com entusiasmo e afeto. Apesar da distância dos últimos anos, o carinho entre ambas permaneceu intacto e entre uma visita e outra, rememorando episódios, elas vão recuperando a intimidade. A escritora parece mais interessada em acompanhar e escutar a amiga do que em julgar qualquer coisa que ela diz — gesto raro e bonito, que facilita a reaproximação nesse momento difícil. Mesmo em sua condição frágil, a amiga é espirituosa, e uma companhia que enriquece a vida da escritora.
A certa altura, depois de uma piora e um prognóstico desesperançoso, a amiga decide que não quer mais passar por procedimentos dolorosos e faz uma escolha pela eutanásia. Já tomou as providências, está com a medicação em mãos — um caminho clandestino, já que a eutanásia não é permitida por lei nos Estados Unidos — e não quer passar seus dias finais sozinha.
Então faz um pedido inquietante: convida a escritora para ser sua parceira nessa jornada. Sua ideia é que façam uma viagem e que lá, um dia, sem que a escritora saiba qual, ela vá adiante com seus planos. E assim elas partem para uma casa de campo nos arredores de Nova York.
Essa é a premissa de O quarto ao lado, novo filme do cineasta espanhol Pedro Almodóvar, que estreou nos cinemas brasileiros. Vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza deste ano, é o seu primeiro longa-metragem, em décadas de uma carreira extraordinária, roteirizado e interpretado em inglês. Inspirado no romance O que você está enfrentando (2020), da nova-iorquina Sigrid Nunez — publicado pela Instante com tradução de Carla Fortino —, o filme homenageia o material de origem, ao mesmo tempo em que o recria à sua maneira.
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Sabemos que livro e filme são obras autônomas, que devem ser avaliadas como tal, mas quantas vezes não é difícil resistir à tentação de estabelecer relações entre elas? O problema costuma ser quando o critério de julgamento é a fidelidade da adaptação. Devemos lembrar que o romance de Nunez é o ponto de partida e não o de chegada para o longa de Almodóvar. Ainda assim, o cineasta demonstra respeito pelo livro que o encantou e inspirou.
A maternidade é tema recorrente em Almodóvar, e segue presente em ‘O quarto ao lado’
Almodóvar tem desafios pelo caminho, por exemplo: o romance é repleto de subjetividade, narrado em primeira pessoa pela escritora, e sua perspectiva precisa ser transposta para as telas. Nesse processo, o diretor não recorre a recursos gastos e o faz com muita competência, quase que exclusivamente de forma visual, apoiado em gestos e também em bons diálogos. A relação de intertextualidade com outras obras é outro elemento importante.
Ingrid, a escritora, interpretada por Julianne Moore, parece ter características passivas, mas na verdade tem uma observação aguda do mundo, interesse genuíno pelas pessoas e boa vontade para ouvi-las.
Já Martha, a amiga que está morrendo, é vivida por Tilda Swinton — num de seus melhores trabalhos — com uma complexidade silenciosa. Gosto bastante das nuances que ela empresta à personagem num papel desafiador. Ao contrário de muitas mulheres criadas por Almodóvar, conhecidas por estarem “à beira de um ataque de nervos” e serem extravagantes, dramáticas, superlativas, aqui as potências de Ingrid e Martha são mais contidas.
Temas e obsessões
Em Julieta (2016), Almodóvar se propôs a adaptar três contos da escritora Alice Munro, partindo de um universo bem diferente do seu habitual. Transitando entre gêneros sempre com habilidade, o cineasta transpôs para a Espanha o que antes se passava no Canadá e deu aos contos, todos sobre a mesma personagem, um final diferente. Naquele filme, a relação entre mãe e filha aparece de forma tumultuada. A maternidade é um tema recorrente em sua obra, e segue presente em O quarto ao lado. Martha está afastada da filha Michelle, também interpretada por Swinton, uma versão bem engendrada do duplo, tópos que faz parte da história da literatura e do cinema.
Na época de Julieta, o cineasta foi criticado por ter se perdido na adaptação, fracassando tanto em criar algo autoral quanto em manter uma relação consistente com o material de origem. Mas, se é verdade que lá encontramos um Almodóvar mais sóbrio do que de costume, também reconhecemos suas obsessões e suas cores, ainda que em objetos pontuais, como acontece de forma bem mais sutil em O quarto ao lado, em que encontramos um universo mais frio, quase asséptico.
Não sei se o filme vai ter o mesmo impacto em quem não leu o livro, por isso recomendo com entusiasmo que o façam. Logo na epígrafe de O que você está enfrentando, Nunez traz uma frase de Simone Weil (1909-43) que deu origem ao título do romance: “A plenitude do amor ao próximo é simplesmente ser capaz de perguntar: ‘O que você está enfrentando?’”.
Adoro a epígrafe, a construção da voz narrativa de Nunez, o viés ensaístico e o tom singelo de seus livros. Entre tantas outras, gosto da passagem em que a narradora imagina uma conversa com um gato, o que não aparece no filme, como outras passagens que dariam ótimas cenas à la Almodóvar e infelizmente não estão lá. Mas o cineasta foi inventivo ao traduzir ideias e sentimentos de outras formas, como nos filmes dentro do filme. Na última cena, a personagem de Julianne Moore recita os próprios pensamentos a partir de James Joyce e das conversas que teve com a amiga a respeito do escritor.
O que sempre nos alegra ao assistir a um filme de Almodóvar é que, mesmo quando não são obras-primas, são infinitamente melhores do que a média. Em O quarto ao lado, testemunhamos uma experimentação em outro idioma e outro universo, que nem sempre funciona, mas é verdadeiramente inventiva. Só um cineasta original e talentoso, um dos maiores do nosso tempo, é capaz de se permitir essa proeza.
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