Quando o foco na mulher apaga a artista

Cinema,

Quando o foco na mulher apaga a artista

Cinebiografia de Pablo Larraín com Angelina Jolie apresenta imagem digna de Maria, mas não está à altura de Callas

11mar2025

Em 1970, numa entrevista concedida a David Frost, em que comenta a relação entre vida pessoal e carreira artística, Maria Callas confessa: “Há duas pessoas em mim, Maria e Callas. Gostaria de ser Maria, mas há a Callas e tenho de estar à sua altura.” Desde então, a relação entre a “mulher” e a “artista” tem sido o alfa e o ómega do mito de Callas, estando no centro de incontáveis estudos, homenagens e evocações, do documentário Maria Callas: la divina (1988), de Tony Palmer, ao projecto multimédia Maria Callas: em suas próprias palavras de Tom Volf (2017). É nesta constelação que Maria, de Pablo Larraín, se insere. E faz uma aposta. O filme, como o próprio título sugere, é antes de mais nada sobre Maria e só depois sobre Callas.

Maria Callas em concerto em 1959 (Joop van Bilsen/Arquivo Anefo/Reprodução)

Estreado no Festival Internacional de Cinema de Veneza em 2024, Maria é o terceiro filme na trilogia de Larraín sobre “grandes mulheres”, seguindo-se a Jackie (2016), sobre Jacqueline Kennedy, e Spencer (2021), sobre a princesa Diana. Recorrendo a cenas em flashback, contam-se os últimos dias da lendária cantora, passados no seu apartamento parisiense e arredores, quando das glórias e paixões do passado só restam memórias e assombrações. A artista, cuja voz já não é o que era, não actua há largos anos. E está cada vez mais só: os amigos afastaram-se e Aristóteles Onassis, o amor da sua vida, morreu em 1975.

No papel principal, Angelina Jolie capta as subtilezas da persona de Maria Callas: um misto de elegância, franqueza e altivez, que tantas vezes se dissolviam em informalidade. Callas aparece-nos distante e brincalhona, arrogante e calorosa, austera e vulnerável. Cruza os braços, como que para se proteger ou aconchegar. O filme sugere que esta postura, que Callas adopta em vários concertos, é uma reminiscência dos tempos de Atenas, quando, durante a ocupação nazi, ela e a irmã mais velha foram levadas pela própria mãe a deitar-se com oficiais alemães. Nestes e noutros pormenores, o filme revela pesquisa minuciosa, mesmo quando mistura realidade e fantasia.

Angelina Jolie em cena do longa ‘Maria’, de Pablo Larraín (Reprodução)

Alguns exemplos: Ferruccio e Bruna, o mordomo e a cozinheira que tanto apoiaram a cantora na vida real, acompanham-na, no filme, em passeios delirantes que jamais aconteceram; o pianista com quem Callas ensaia num teatro é a cara chapada de John Ardoin, o crítico de quem Callas se tornou amiga em 1967 mas com quem cortou relações em 1974 (após actuações menos bem conseguidas da cantora, que o crítico, com uma objectividade inclemente, apelidou de desastrosas); finalmente, Mandrax foi efectivamente o medicamento que a cantora tomou no final da sua vida — e que, no filme, se transforma numa alucinação: um entrevistador que a interroga para um documentário autobiográfico, fruto da sua imaginação.

Por si só, este jogo entre realidade e fantasia nada tem de problemático; na verdade, poderia dar resultados fascinantes. O mesmo se aplica à manipulação digital de imagem e som, quando a figura e a voz de Jolie são sobrepostas às de Callas em reconstruções de vídeos efectivamente existentes, tanto de concertos públicos como de convívios privados, sem esquecer a célebre fotografia que Cecil Beaton tirou da diva em 1956 e que serviu de modelo para as não menos famosas serigrafias de Warhol. A questão que, todavia, se levanta é: ao serviço de que visão são esses jogos e técnicas mobilizados? Que imagem de Maria Callas veiculam?

Tom trágico

Este não foi o primeiro biopic de Maria Callas. E já Callas forever (2002), realizado por Franco Zeffirelli, e contando com Fanny Ardant no papel principal, se instala no final da vida da cantora, não escondendo a angústia da perda de voz e a recordação do amor traído. Contudo, aí vemos a cantora a trabalhar, ensaiando em casa e actuando num filme-ópera (também ele fictício) de Carmen. Em Maria, pelo contrário, o tom é trágico e triste do princípio ao fim. É verdade que a cantora se esforça por recuperar a voz, mas os resultado são pífios. Sublinha-se, ainda assim, que deseja tomar as rédeas do seu destino: tornar a cantar, não para actuar em público, mas para si mesma: “agora, finalmente, tenho eu o fim sob controle”. Porém, o que sobressai é uma Callas abatida e desorientada, cada vez menos capaz de discernir entre realidade e alucinação.

Mas demos uma chance à fantasia e consideremos a entrevista com Mandrax. A sua inclusão é uma das originalidades do filme que, dado que a cantora projectou realmente uma autobiografia (da qual sobreviveram vários esboços), nada tem, à partida, de absurdo. Mas a maior parte da conversa gira em torno do romance com Onassis… Já sobre momentos cruciais do seu percurso artístico: o estudo com Elvira de Hidalgo, a mentoria de Tullio Serafin, a orientação de Luchino Visconti, a colaboração com Pier Paolo Pasolini, os triunfos ou mesmo os desaires — silêncio total… Ora, sabendo Larraín tudo isto, por que, num filme sobre Maria Callas, apresentá-la assim tão presa ao destino de mulher sofredora?

‘Déjà vu’

Numa cena em que as duas irmãs conversam sobre as dificuldades dos tempos de Atenas e os abusos da mãe, a irmã mais velha diz a Maria: “Fecha a porta”. Ao que esta responde: “Não posso. É a única maneira de a música entrar.” Esta passagem é decisiva. Ela traduz, de forma indirecta mas inequívoca, o modo como o filme imagina a relação entre vida e arte: a criatividade da artista — que não diz apenas respeito à técnica mas à autenticidade da interpretação — deve-se ao sofrimento da “mulher”.

Neste aspecto, Maria suscita, apesar daquilo que tem de original, um sentimento de déjà vu. É que nada disto é novo. Nem a ideia de que o destino trágico de Callas se assemelha ao das personagens que interpretou, nem a sugestão de que é por isso — por conhecer de perto o sofrimento, o abandono e a traição — que a artista se destacou como intérprete dessas personagens. Callas, ao contrário de outras cantoras do seu tempo, como Renata Tebaldi, não se limitaria a interpretar Tosca de forma exímia. Callas seria Tosca! E, no caso deste filme, seria Lucia, Elvira, Anna Bolena — as mulheres loucas das óperas de Donizetti e Bellini.

No filme, o que sobressai é uma Callas cada vez menos capaz de discernir entre realidade e alucinação

A vida da cantora dava uma ópera… O filme segue este mote na sua estrutura em actos e na integração de árias decisivas do repertório de Callas na acção. Só não se percebe de imediato o uso do “Prelúdio” de Parsifal, de Wagner. A explicação mais óbvia é que Callas, embora se tenha destacado como intérprete do bel canto, chegou a interpretar esta ópera de Wagner no início da carreira em 1950; a menos óbvia é que esta cena, consciente ou inconscientemente, é uma citação de To the Wonder, de Terrence Malick; nos dois filmes, estes compassos lancinantes, singularmente capazes de expressar um misto de angústia, gozo e culpa, acompanham o anúncio e a consumação de um adultério.

Sejamos justos. Apesar de loucura e genialidade irem de mãos dadas neste retrato cinematográfico de Maria Callas, o filme de Larraín apresenta uma imagem digna. Culminando uma trilogia dedicada a mulheres fortes, Maria põe a ênfase na serenidade e na nobreza da artista. Ela nunca perde a compostura. O seu rosto permanece erguido. Por mais que desafine, a sua voz revela firmeza. Mas o preço a pagar por este elogio à mulher — eis, porventura, a grande ironia deste filme — é a rasura da artista que esta mulher também foi. Esta ironia é sintomática do nosso tempo. Independentemente do que pensemos sobre ela, uma coisa é certa: o filme, ao contrário do que Maria desejou, a julgar pelas suas palavras naquela entrevista de 1970, não está à altura de Callas.

Quem escreveu esse texto

João Pedro Cachopo

filósofo, musicólogo e professor na Universidade Nova de Lisboa, é autor O escândalo da distância: uma leitura da montanha mágica para o século XXI (Tinta-da-China Brasil)

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