Eleito o melhor livro do século 21 em enquete feita pelo The New York Times, a tetralogia de Elena Ferrante, iniciada por A amiga genial, foi lançada em 2011 e se transformou em série de quatro temporadas (2018-24) pela HBO e RAI. Há duas semanas chegou ao fim uma jornada épica, um périplo dramático do audiovisual que deu contornos arquitetônicos, espessura filosófica e ânimo convulsionado à amizade de seis décadas entre Raffaella Cerullo e Elena Greco, Lila e Lenu.
Conheci a tetralogia em 2017, quando estava grávida da minha filha mais velha, hoje com seis anos, a Lena. Sentia enjoos incapacitantes e quedas de pressão que me faziam vomitar entes insólitos impossíveis de taxonomizar. Para fugir do cheiro miasmático de todas as comidas, me enfurnava em um quarto com um copo de chá de limão e adentrava a jornada de ira e vaidades daquele bairro periférico napolitano, de preciosismos ensimesmados na voz de Lenu, de pensamentos vertiginosos de uma Lila às voltas com sua criatividade espantosa e sua pulsão pela idealidade de mundo.
Corte para os puerpérios, amamentação, crianças brigando e a dificuldade para assistir a cada episódio depois de minhas Lena e Laura adormecerem. Quando entro no quarto de TV, ainda reverbera o som do piano da vinheta de abertura dos episódios da quarta temporada: o rastilho cinematográfico do bairro operário, do encontro fisionômico de Lila e Lenu, outrora imaginados e excursionados por nós leitores com avidez, agonia e ternura, acendendo o acervo nostálgico e quase incólume da memória dos livros.
O estranhamento do início se converteu em epifania e no reconhecimento da assinatura de Ferrante
A primeira temporada me causou um acabrunhamento de ordem urbanística. Os prédios e os pátios que aludiriam ao suposto bairro das famílias Cerullo e Greco, o Rione Luzzatti, pareciam computação gráfica, tão diferente daquelas películas orgânicas do neorrealismo italiano. O estranhamento, no entanto, se converteu em epifania e no reconhecimento da assinatura de Ferrante naquele bairro povoado de cheiros e sofrimento psíquicos, mafiosos, trabalhadores, crianças em idade escolar. E tornou possível alcançar tantas cozinhas e presentificar tanto os pactos do comezinho quanto os sobressaltos excêntricos.
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Toda essa memorabilia e o inventário de arcos dramáticos e geográficos — que vão da periferia à área nobre de Nápoles, dos passeios angustiantes e repletos de violações às praias de Ischia e ao luxuoso apartamento de Lenu e Nino na via Petrarca, além dos trânsitos por Pisa e Turim — mobilizam incursões a mundos aparentemente inacessíveis, não fosse o trabalho ficcional de Ferrante e a fotografia da série, com direção de Saverio Costanzo, Laura Bispuri, Daniele Luchetti. Costanzo foi também responsável pelos roteiros, assinados com Francesco Piccolo e Laura Paolucci, além da própria Ferrante.
Mudança de atores
Entre a senda imaginativa das feições dos personagens e a chegada de velhos conhecidos nossos, emergiram encantamento e estranhamento, mas no transcorrer da série houve quem se indignasse com a mudança de atores na quarta temporada, sobretudo de personagens masculinos que aparentavam ser mais velhos do que na tetralogia, como no caso da troca de Ninos, de Francesco Serpico por Fabrizio Gifuni. Mas desses remanejamentos todos o que mais reverberou em mim foi o do personagem Michele Solara, antes interpretado por Alessio Garo, que encarnava perversão e elegância com uma altivez que o ator Edoardo Pesce depois não conseguiu encampar.
Da parte das protagonistas, Ludovica Nasti e Elisa Del Genio dão vida a Lila e Lenu na infância; na juventude assumem as incríveis Gaia Girace e Margherita Mazzucco, seguidas por Irene Maiorino e Alba Rohrwacher na fase adulta. Alba causa algum desconforto no início, pela diferença de estrutura e expressividade faciais trazendo à tona uma Lenu ainda mais encalacrada em sua vulnerabilidade.
Nos romances, ainda que seja manifestada sua dificuldade na construção de autoestima, vigora a penosa conquista de confiança por meio da escrita, o que na série aparece com menos ênfase pelo realce contínuo de sua obsessão por Nino Sarratore. Assim, a distância entre a eloquência e a força libidinal de seu texto e a obviedade dos erros de suas decisões ganham contornos mais acentuados na tela.
A cinética visual da conturbada relação de Lenu e sua mãe, Immacolata, interpretada com brilhantismo por Anna Rita Vitolo, aglutina e faz reverberar o medo da filha em converter-se na própria mãe e o ressentimento de classe da mãe diante dos signos de distinção da erudição. O desprezo pelo divórcio da filha se dá num fluxo de crises, insultos, armistícios, rupturas, reatamentos e psicossomatizações que se sedimentam ao longo dos anos no corpo de Lenu. A dor que irradiava da coxa até a virilha em momentos de tensão é performada com força e delicadeza no mancar da personagem. Ainda que a trégua apareça, o desejo de escapar do binômio mãe-filha de Lenu se desintegra, uma vez que é fantasioso, e resta a ela, agora como mãe, negociar sua insuspeita falta de liberdade diante dos destinos das filhas Dede e Elsa.
Na confluência de cenas transpostas para a tela, invoco os registros inesquecíveis da “desmarginação” de Lila nos preparativos para o Ano Novo de 1959 e durante o terremoto de novembro de 1980. O close em Lila explicando para Lenu seu contínuo esforço para convencer a si mesma de que a vida tinha margens firmes — já que intuía desde a infância que não era assim, e por isso não conseguia confiar em sua resistência a choques — revela um jogo incessante entre corpo e pensamento em uma Lila desencriptada entre seus testemunhos e sua emoção tátil.
Fratura
Contenção e correnteza, promessa e perjúrio, herança e luto em uma amizade definida por Lenu como “esplêndida e tenebrosa”. São as palavras que convocam em ritmo nostálgico e perplexo uma liturgia de despedida.
No abraço entre as amigas, a cena dentro de todas as outras cenas, que esconjuraram violências e invocaram a amizade como dom para sobreviver aos traumas e perdas: o manejo fabulatório de Lila em não ceder ao corte das margens meticulosamente cerzidas desde a infância. Uma personagem lúcida e em vigília, fulminante e irrequieta, que funda desvios para acelerar controle e utopia, única temporalidade possível para ela.
A fratura desse pacto de unidade em Lenu é o abalo sísmico de Lila — e não deixa de ser nossa consciência em alerta para o fim de uma história, de uma obra de arte.
Depois de sete anos que li a tetralogia napolitana pela primeira vez, penso na sintaxe dos abraços do episódio final, nos signos do medo e do vazio de maternidades em rota pela alteridade. O luto e a saudade de Lila desde o sumiço da filha Tina tem o gosto mais azedo e sombrio que experimentei com um objeto artístico na vida. No fim das contas, o retorno das bonecas no último capítulo, para mim, habitante de um apartamento tragado por brinquedos e pelo medo dos muitos perigos que acossam toda infância, dão lastro ao mundo foragido e seguro de Lila, aquele em que ela brincava e jogava — e aqui leia-se meu espanto de acessar a fundo esse lugar sagrado e de longa reverberação nos livros e na vida: a infância.
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