Divulgação Científica,

A imensidão da vida

Em livro sobre os sentidos dos animais, jornalista recorre à ciência e à literatura para colocar em xeque a nossa própria percepção do mundo

01ago2024 • Atualizado em: 02ago2024 | Edição #84
O jornalista e escritor Ed Yong (Urszula Soltys/Divulgação)

Alguns escritores investigam a relação entre humanidade e animalidade. João Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade e Machado de Assis, por exemplo, “privilegiam os animais como sujeitos, seres dotados de inteligência, sensibilidade e saberes sobre o mundo”, como escreve Maria Esther Maciel em Literatura e animalidade (Civilização Brasileira, 2016).

Se nas obras literárias, por vezes encontramos tentativas de observação do que Maciel chama de “alteridade radical”, esse mesmo exercício nem sempre alcança, em outros campos, a complexidade textual do que está buscando apreender e representar. Forma e conteúdo, quando trabalham em conjunto, alcançam um novo patamar. Ed Yong, autor de Um mundo imenso: como os sentidos dos animais revelam reinos ocultos à nossa volta, com ótima tradução de Christian Schwartz, consegue fazer isso muito bem.

Jornalista especializado em ciência, Yong escreveu também o celebrado I Contain Multitudes [O Eu contém multidões], e penso que não poderia haver um título mais interessante do que esse verso de Walt Whitman, cantado por Bob Dylan, para falar da vida dos micróbios.

A escolha dos dois títulos de Yong demonstra a importância da literatura para o autor — “Um mundo imenso” vem de um verso de William Blake, que está na epígrafe do livro. Vencedor do prêmio Pulitzer por uma série de reportagens sobre a pandemia de Covid-19, Yong traz uma abordagem literária com referências que fazem mesmo diferença para quem lê — não apenas pela qualidade do texto como também pela profundidade que ele consegue alcançar de forma sensível, espirituosa, criativa, instigante.

A abordagem literária e as muitas referências que Yong carrega fazem mesmo diferença para quem lê

Na introdução de Um mundo imenso, o autor nos convida a fazer um exercício de imaginação e parte do pressuposto de que um grupo de animais diferentes, incluindo uma mulher chamada Rebecca, estão compartilhando o mesmo espaço físico — “pode ser uma quadra de uma escola”, diz ele. Lá estão um elefante, um rato, uma cascavel, um morcego, um tordo, uma coruja, uma aranha, uma abelha, um mosquito e Rebecca. Então o autor começa a acrescentar movimentos e possíveis conflitos, aos quais cada um reage à própria maneira.

Pois se é verdade que essas criaturas dividem o mesmo espaço, também é fato que elas o percebem de formas profundamente diferentes:

A Terra está repleta de imagens e texturas, sons e vibrações, cheiros e sabores, campos elétricos e magnéticos. Mas cada animal só é capaz de absorver uma pequena fração da plenitude da realidade. Cada qual vive encerrado em sua bolha sensorial única, percebendo apenas uma pequena fatia de um mundo imenso.

Para designar esse espaço, o autor recorre a uma palavra estrangeira, que mantém sem tradução: Umwelt. Criada no início do século 20 pelo zoólogo estoniano de ascendência alemã Jakob von Uexküll, o conceito vem da palavra alemã para “meio ambiente”. Mas, Yong enfatiza, ele não a empregava para se referir apenas ao espaço concreto que cerca um animal.

Umwelt é especificamente a parte dessas cercanias que um animal é capaz de sentir e perceber — seu mundo perceptível. Tal como os ocupantes da nossa quadra imaginária, uma multidão de criaturas poderia estar no mesmo espaço físico e ter Umwelten completamente diferentes.

Isso faz pensar que nós, seres humanos, também temos um Umwelt limitado, noção incômoda para as pessoas que fazem acrobacias retóricas para justificar uma visão antropocêntrica, em que aparecemos como a “espécie vencedora”. Para amparar esse postulado, essas pessoas utilizam como régua os sentidos e feitos humanos, desconsiderando a infinitude que habita o mundo que compartilhamos com outros animais e outras formas de vida. Assim, é fácil ganhar. Como nos lembra o autor:

Existem animais capazes de escutar sons no que nos soa como um perfeito silêncio, de enxergar cores no que nos parece uma escuridão total e de sentir vibrações no que, para nós, é uma paisagem completamente parada.

Diversidade sem superioridade

Yong pontua algo fundamental ao apresentar o escopo de seu ensaio:

Este não é um livro de listas, no qual procedemos a uma classificação infantil dos animais de acordo com a agudeza de seus sentidos e os exaltamos apenas quando suas capacidades superam as nossas. Este não é um livro sobre superioridade, mas sobre diversidade. É também um livro sobre animais enquanto animais.

A capa da edição brasileira, com lindas ilustrações de Laurindo Feliciano, contribui para reforçar essa visão.

O autor menciona que alguns cientistas se propõem a estudar os animais para que possamos compreender melhor a nós mesmos ou desenvolver tecnologias inspiradas em seus sentidos, algo a que ele se contrapõe, argumentando que os animais “têm valor em si mesmos. Exploraremos seus sentidos para entender melhor a vida deles”.

Megalopta sp. (Divulgação)

Claro que um projeto como esse está sujeito a paradoxos, seja porque temos limitações próprias de nosso Umwelt, seja porque a cultura nos torna seres ainda mais contraditórios. O subtítulo do livro pode dar a entender que o propósito da obra é estudar os sentidos dos outros animais para revelar o mundo oculto à nossa volta, uma dimensão mais utilitarista do projeto. Mas Yong reconhece e valoriza a diferença em si mesma e consegue seguir adiante com todos os percalços.

Ele conta que quando passeia com seu cachorro, observa a atenção com que ele fareja coisas imperceptíveis para a sua bolha sensorial. Se fizermos um exercício de observação e imaginação, diz ele, podemos acreditar que o mundo é infinitamente maior do que somos capazes de perceber. Ao nos dar conta disso, quem sabe, talvez possamos ampliar nossos limites um milímetro que seja. Um milímetro do infinito já é o bastante para enriquecer uma vida inteira.

O que ficou de mais precioso ao fazer essa leitura fascinante foram duas coisas: 1) há no outro uma dimensão sempre impossível de apreender, mas 2) imaginar é algo que pode nos aproximar de compreender.

Quem escreveu esse texto

Fabiane Secches

É psicanalista e pesquisadora de literatura na Universidade de São Paulo.

Matéria publicada na edição impressa #84 em agosto de 2024.

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