Cinema,
A revolução elétrica de Bob Dylan
Um completo desconhecido ficcionaliza fase mais inovadora da carreira do músico e tem em Timothée Chalamet boa parte de seu encanto
27fev2025 • Atualizado em: 28fev20251961. Um rapaz de vinte anos chega de carona a um hospital em Nova Jersey. Munido de um violão, ele vai ao quarto em que está internado o lendário cantor folk Woody Guthrie e entoa uma balada composta especialmente para ele, àquela altura enfrentando uma doença terminal:
Ei, ei, Woody Guthrie, escrevi pra você/ Sobre um velho mundo a seguir sem por quê /Parece doente, com fome e com dor/ Mal começou a vida e já sente o fim chegar com rigor.
O olhar fascinado do músico, que se encontrava na ocasião ao lado de seu velho amigo Pete Seeger, outro artista folk da época, indica a mudança de paradigma. Diante deles chegava o futuro, e ele se apresenta timidamente: “Sou Bob… Dylan”.
A introdução de Um completo desconhecido ilustra a revelação de Dylan para além do modesto cenário cultural de seu estado natal, Minnesota, onde ele se apresentava em palcos sem maior expressividade cantando covers de gente como Elvis Presley e Little Richard, como aconteceu naquele início dos anos 60. O que encanta Guthrie e Seeger não é apenas a ousadia e a voz aguda e chorosa do jovem franzino, mas a força de suas composições. “Foi ele mesmo quem escreveu”, alguém sussurra num estúdio de gravação ao ser perguntado de quem era a autoria da canção que Dylan entoava, “Girl from the North Country”, parte do repertório de seu segundo disco.
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A cinebiografia dirigida por James Mangold foi escrita pelo próprio cineasta, em colaboração com o roteirista Jay Cocks, a partir do livro Dylan Goes Electric!, do músico e escritor norte-americano Elijah Wald, publicado em 2015 (com previsão de lançamento no Brasil em abril, pela Tordesilhas, com o título Dylan elétrico: do folk ao rock). Não se trata exatamente de um resumo da vida de Dylan, e sim um recorte bastante específico: o período entre 1961 e 1966, quando o cantor e compositor tornou-se conhecido no cenário musical norte-americano com suas baladas folk e fez a transição do tradicional violão para a guitarra elétrica. No processo, ele revolucionou a música pop de uma maneira inédita e que, talvez, jamais tenha se repetido.
Didático, o filme também presta tributo tanto ao músico quanto aos fãs mais versados em sua obra
Depois da visita a Guthrie, Dylan é adotado pelos cantores folk tradicionais de Nova York e fica conhecido nos clubes noturnos do Village, bairro da boemia local onde conviveu com colegas do meio. Naquele ambiente, cantando, gravando e se irritando, envolveu-se num turbulento romance com Joan Baez. A cantora, já consolidada naquele começo de década, foi essencial na visibilidade de Dylan, inclusive por convidá-lo a se apresentar com ela em festivais pelo interior do país.
Impressionando por onde passava, o jovem inquieto logo se aflige com tanta atenção. Preocupado em estagnar seu processo criativo, ele trata rapidamente de inventar outras modas. Em apenas quatro anos, entre deixar de ser um completo desconhecido e estremecer o ambiente que ajudou a revigorar, depois de gritar músicas de teor político, como “The times they are a-changin” e “The lonesome death of Hattie Carroll”, e de servir de exemplo a velhas gerações do folk como um possível renovador do estilo, Dylan chocou a todos com “Like a Rolling Stone” e sua eletrificada apresentação no tumultuado Newport Folk Festival de 1965.
Metamorfose
É por esse contexto que James Mangold trafega no filme, sustentado pela sólida interpretação de Timothée Chalamet, que recria os trejeitos, a voz e o estilo de Dylan. Um dos atrativos em cena é justamente acompanhar a metamorfose do ator, numa daquelas encarnações quase fantasmagóricas que tanto fascinam a indústria de Hollywood e cativam espectadores. Boa parte do charme de Um completo desconhecido é ver como Chalamet se apropria de momentos-chave na trajetória do cantor, sobretudo os amplamente registrados. O público tem um complemento documental dessa fase em No direction home (2005), no qual Martin Scorsese investiga exatamente o mesmo período retratado na ficção de Mangold a partir de vasto material de arquivo.
Figuras importantes do cenário musical atravessam a narrativa de Um completo desconhecido, recriadas por um elenco em ótima sintonia. Ali se veem Monica Barbaro na pele de Joan Baez, Boyd Holbrook como o músico Johnny Cash, Scoot McNairy dando vida ao moribundo Woody Guthrie e Edward Norton interpretando Pete Seeger. Esse conjunto, mais as letras de Dylan generosamente apresentadas na voz de Chalamet, impulsiona a história, especialmente porque o didatismo do roteiro permite a espectadores menos familiarizados aos acontecimentos, ou ao cancioneiro de Dylan, se sentirem confortáveis ao acompanhar os desdobramentos dramáticos. Ao mesmo tempo, o filme presta tributo tanto ao músico quanto aos fãs mais versados em sua obra.
Conexões frágeis
Esses facilitadores acabam por ser também fragilidades de Um completo desconhecido. Por ter a ambição de captar a inovação de Dylan em pouco mais de duas horas e conectá-la a amores e desilusões, à conjuntura mundial e cultural (crise dos mísseis de Cuba, Guerra do Vietnã, contracultura, luta por direitos civis, ascensão da guitarra elétrica) e ao temperamento ora enigmático, ora apenas reativo do cantor, o longa se rende a conexões um tanto frágeis de causa e efeito, como se determinado lance de roteiro fosse diretamente responsável ao acontecimento seguinte.
Por vezes, o diretor não dá conta de fazer essas passagens com vigor, por causa da complexidade estrutural do que está a abordar. O efeito é uma simplificação bem típica de cinebiografias similares, dessas que tentam conter, num relato retilíneo, momentos de vidas impossíveis de serem contidas. Mangold já tinha feito algo parecido em Johnny & June (2005), no qual retratou a dupla Johnny Cash e June Carter (vividos por Joaquin Phoenix e Reese Witherspoon) a partir de suas relações íntimas e artísticas ao longo dos anos 50 e 60. Em contraponto a esse tipo de abordagem mais novelesco, o diretor Todd Haynes fez, em 2007, o impressionante Não estou lá, delírio semibiográfico justamente sobre Bob Dylan, em que o cantor é interpretado por seis pessoas diferentes, entre elas Richard Gere, Heath Ledger, Christian Bale e Cate Blanchett, de acordo com a fase da vida e da carreira do músico.
É claro que a ambição de James Mangold é mais modesta que a de Haynes. Seu objetivo passa por apresentar ou referendar Dylan e fazer um filme mais palatável, de comunicação direta e com pouco espaço a reflexões. Não deixa de ser algo coerente com a própria trajetória iniciática de Dylan e seu diálogo hipnotizante com quem o ouvia, ainda que seja também um gesto estético contraditório à postura sempre indisposta e iconoclasta a quaisquer certezas do músico que no futuro viria a ganhar o Nobel de Literatura. Mas, se servir de porta de entrada ao mundo vasto, misterioso e poético de um gênio, Um completo desconhecido tem sua importância.
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