Literatura japonesa,

Doce amargo

Romance de Banana Yoshimoto suscita questões curiosas sobre vida e morte, mas se apressa em oferecer respostas gastas

11jan2024

Sayo, uma mulher de 28 anos, sofre um acidente de carro nos arredores de Kyoto, no Japão. A seu lado, dirigindo, está o namorado, que não sobrevive. Ela tem ferimentos graves e fica entre a vida e a morte, quando vive uma experiência difícil de definir — uma alucinação? uma visão? — e reencontra primeiro o cachorro e depois o avô, ambos amados. Ambos mortos.

Dois anos depois, enfrentando os vestígios de uma longa recuperação e às voltas com o luto, passamos a acompanhar suas andanças e seus pensamentos, na maior parte reflexões filosóficas sobre a vida, sobre o valor do tempo presente e das relações afetivas e sobre a efemeridade de todas as coisas.


Doce amanhã, de Banana Yoshimoto

Contando assim, o breve romance Doce amanhã, traduzido por Jefferson José Teixeira, parece uma leitura mais rica do que é. Banana Yoshimoto (pseudônimo de Mahoko Yoshimoto), nascida em Tóquio em 1964, aborda os temas da morte e do luto em outras de suas obras, como em Kitchen, de 1988, pelo qual recebeu o prêmio Izumi Kyoka. Mas, aqui, a autora alterna momentos delicados de beleza com clichês superficiais. As dúvidas e questões que levanta ao longo da narrativa são sem dúvida curiosas, mas suas tentativas de respondê-las empobrecem o romance de pouco mais de cem páginas.

Mesmo sendo um sonho ou uma ilusão criada em meu cérebro pelos medicamentos, após meu retorno daquele mundo cheguei a me convencer de que a chave de tudo era o arco-íris. Eu o vi pela janela do hospital e chorei copiosamente, certa de que ele era a ponte ligando o paraíso à terra.

Depois de sua experiência de quase morte, a narradora passa a ver espíritos e se encanta por uma mulher que avista da janela de um prédio semiabandonado. Lá conhece o filho dela, que se mudou para o lugar para ficar mais perto da alma da mãe. Mas, diferentemente da narradora, ele não consegue vê-la, e esse é o assunto que dá início à amizade dos dois. Gosto da ideia de amizades que nascem de forma estranha, e gosto da decisão de Yoshimoto de não transformar essa amizade numa história romântica convencional, mas o elo entre os personagens parece um pouco forçado. Todo o trecho que os envolve quase sempre deixa a desejar.

Sayo também passa a frequentar assiduamente um bar da região e a beber com frequência. Lá, faz outra amizade central no enredo: conversa com o dono do local, que, ao que parece, acaba se apaixonando por ela. As passagens em que está no bar poderiam ajudar a conhecer melhor o mundo interno da narradora, mas há pouco para ser descoberto. Ela tem uma visão simplista das coisas e, muitas vezes, infantil.

A escritora alterna momentos delicados de beleza com clichês superficiais

Se a protagonista se ocupasse mais com a narração e com a descrição do que com os comentários ensaísticos, talvez a obra funcionasse melhor — mesmo levando em conta que a descrição das cenas que vislumbrou à beira da morte soem gastas, seja do ponto de vista das imagens ou da linguagem. 

Excesso de açúcar

Fico pensando em dois romances contemporâneos breves como esse, mas que conseguem transmitir com riqueza experiências quase indizíveis: O amigo, de Sigrid Nunez, e Frio o bastante para nevar, de Jessica Au.

Já na literatura japonesa atual, Murakami consegue sustentar sentimentos e observações sofisticadas mesmo com uma linguagem aparentemente simples, como faz nos contos “Drive My Car” (parte da antologia Homem sem mulheres, com tradução de Eunice Suenaga), que inspirou o lindo longa homônimo vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional em 2022, e Abandonar um gato: o que falo quando falo do meu pai, publicado numa edição à parte com tradução de Rita Kohl e ilustrações de Adriana Komura.

Tem algo de contemplativo nessas obras breves que garantem uma distensão do tempo, ou sua suspensão, e nos sentimos transportados para a história narrada sem trancos, com textos ao mesmo tempo firmes, maduros, e repletos de extrema delicadeza, para não esmagar a beleza e o espanto dos que tentam se aproximar. Sayo se torna uma pessoa ainda mais aberta para o encanto das pequenas coisas, mas soa pueril pela forma que as apresenta e pela linguagem que usa, e não sábia como gostaria de ser.

Depois que esse sentimento de gratidão aflorou em mim tudo se tornou maravilhoso. Sentia o suco de toranja ácido, porém gostoso. Meu corpo transmitia sua alegria por meio dessas pequenas sensações. E eu me emocionava a cada vez com a compaixão demonstrada pelo meu corpo para comigo.

É inevitável pensar no que a história poderia ser quando penso no que de fato é. O livro foi escrito em 2011, depois do terremoto e tsunami de Fukushima, que, segundo a própria autora conta no posfácio, poderia trazer uma mensagem de esperança e oferecer conforto aos sobreviventes.

Talvez se o projeto fosse menos ambicioso em termos utilitaristas, servisse melhor inclusive a esse propósito, já que o enredo tem uma premissa instigante. O romance levanta questões mais profundas do que as respostas que oferece e a transformação que a protagonista experimenta não é uma história de redenção hollywoodiana. São os momentos singelos, o encontro com outras pessoas, próximas e distantes, que a acompanham nesse período tão específico quanto o luto de uma pessoa amada e de toda uma vida sonhada por vir.

Há bons momentos. É uma pena que eles sejam entrecortados de forma abrupta por uma narradora muito apressada em comentar e tirar conclusões de cada pequena coisa terrível e maravilhosa que lhe acontece. Se afinal ela passa a olhar para o presente e para o futuro com serenidade, seu Doce amanhã parece ter exagerado no açúcar.

A editoria de Literatura japonesa tem o apoio da Japan House São Paulo.

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

Fabiane Secches

É psicanalista e pesquisadora de literatura na Universidade de São Paulo.