Cinema,
Chanchada modernista
Em Mário de Andrade, o turista aprendiz, Murilo Salles adapta o diário do escritor pela Amazônia e traduz em imagens seu lado satírico e despretensioso
27mar2025Pouco antes de embarcar para uma viagem à Amazônia em 1927, o escritor Mário de Andrade tinha acabado de concluir Macunaíma, no qual utilizara o próprio imaginário sobre as florestas brasileiras para narrar a história do “herói sem nenhum caráter” notabilizado no romance, publicado em 1928. A viagem, então, parecia inevitável ao artista de 33 anos, quase um fechamento de ciclo de quem ainda estava tão impregnado de Brasil após o processo de escrita. Quase um século depois, o diretor carioca Murilo Salles fez movimento similar ao adaptar ao cinema O turista aprendiz. Filmou e montou em 2023 sua versão em longa-metragem dos diários de Mário sobre a Amazônia. Pouco depois, embarcou ele mesmo numa viagem pela floresta, onde captou imagens dos locais por onde o autor passou. No retorno, Salles mexeu na edição do filme e inseriu alguns desses registros, os únicos do projeto feitos fora de estúdio.
A coincidência de movimentação não foi percebida por Salles até esta conversa com a Quatro Cinco Um. “Meu Deus! Foi igualzinho, eu refiz o processo do Mário. A gente se envolve tanto que nem nota uma repetição dessa”, surpreende-se. Diferente de seu protagonista, porém, o diretor já tinha visitado a Amazônia antes, mas com outros objetivos profissionais. Ter ido dessa vez, banhado do imaginário do autor, foi como a ida deste nos anos 20 embebido no caldeirão cultural que ele mesmo criara em Macunaíma.
‘Mário ensaia narrativas chanchadeiras que eu achei pertinentes de transfigurar em cenas’
Mário de Andrade, o turista aprendiz adapta com liberdade poética o diário da viagem que o escritor modernista escreveu após percorrer a Amazônia. O filme não segue uma estrutura biográfica convencional nem algum arco narrativo típico de “trip movies”. Salles decide por se instalar na mente do autor e seguir mais próximo à subjetividade do diário, misturando memória, ficção e reflexões sobre o Brasil. “A grande decisão que eu tomei é que a narrativa está na cabeça do Mário”, explica. Por isso a opção por filmar integralmente num estúdio do Rio de Janeiro, local onde se construiu um aparato cenográfico e lúdico que reproduz situações e passagens detalhadas pelo escritor nas entradas do livro.
Mário só organizou as anotações da viagem — definida por ele no subtítulo original como um trajeto “do rio Amazonas até o Peru, pelo rio Madeira até a Bolívia e por Marajó até dizer chega” — em 1943, quase duas décadas depois. Além das anotações a mão, usou uma máquina fotográfica portátil Kodak para registrar paisagens e pessoas. O diário veio a público 31 anos depois da morte do escritor, em 1976, numa primeira edição organizada pela pesquisadora Telê Ancona Lopes. O mais recente volume do diário foi lançado em outubro de 2024 pela Tinta-da-China Brasil, selo editorial da Associação Quatro Cinco Um.
Retratar o Brasil
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Aos 74 anos e um dos nomes mais experientes em atividade no audiovisual brasileiro, Murilo Salles percebe no interesse em filmar o livro de Mário de Andrade uma extensão de sua inquietação em retratar o Brasil sob vários pontos de vista. “Meus filmes sempre giram em torno de um país tão complexo e contraditório como o nosso”, afirma. “Sou movido pela brasilidade que vejo na maneira de falar das cidades socialmente fraturadas, como fiz em Como nascem os anjos (1996); de abordar a ditadura militar em Nunca fomos tão felizes (1984); ou a corrupção nas elites governantes em Faca de dois gumes (1986); ou mesmo, como em Nome próprio (2007), no qual adapto um livro da Clara Averbuck, falar da obsessão que o brasileiro tem com redes sociais, uma coisa forte já naquele período e hoje ainda mais intensa”, enumera o cineasta.
A brasilidade de que fala Salles está identificada, em Mário de Andrade, o turista aprendiz, no paralelismo que ele arrisca fazer entre o modernismo da obra do escritor e a chanchada, subgênero de grande sucesso no cinema brasileiro da década de 40, justamente quando o livro é finalizado. “O diário dele na Amazônia é uma grande chanchada”, acredita Salles. Ele relembra passagens em que os viajantes se perdem na mata ou são atacados por formigas, ou quando o paulista resmunga sobre suas companheiras de viagem — a mecenas Olivia Guedes Penteado e duas adolescentes, uma delas filha da pintora Tarsila do Amaral. Para o cineasta, a forma como estão registrados os acontecimentos contrasta com a imagem tradicional de intelectual austero e revela um lado satírico e despretensioso: “Ele ensaia narrativas chanchadeiras que eu achei pertinentes de transfigurar em cenas e imagens”.
O objetivo era que o filme fosse lançado em 2022 como parte das celebrações de centenário da Semana de Arte Moderna. Quando estava tudo pronto para as filmagens, no começo de 2020, a pandemia de Covid-19 varreu o mundo, e Salles precisou cancelar todo o processo e bancar um grande prejuízo financeiro. O projeto só pôde ser retomado quase três anos depois, para enfim chegar aos cinemas em março de 2025, depois de percorrer diversos festivais.
Híbrido audiovisual
Em Mário de Andrade, o turista aprendiz há referências diretas a Macunaíma, publicado depois da viagem de Mário, e até mesmo à adaptação cinematográfica de Joaquim Pedro de Andrade lançada em 1969. Está na concepção de Salles deixar impregnar os pensamentos do autor, que tinha recém-finalizado o que viria a ser seu trabalho mais famoso. “O Macunaíma estava na cabeça dele quando ele entrou naquele barco, e a viagem à Amazônia foi crucial para ele mesmo entender seu próprio romance, que reinventou a linguagem literária brasileira”. Embora tenha as imagens documentais captadas em 2023, o filme não busca o registro realista ou naturalista. “Eu queria a visão do barco e queria a visão da mente do escritor”, afirma o diretor. Fica evidente, em toda a duração do longa, que o espectador está em contato com uma Amazônia imaginada por Mário filtrada pela visão de Salles, num híbrido literário, geográfico e audiovisual.
‘Mais do que um estudo acadêmico, tenho com Mário uma conexão íntima, uma convivência imaginária’
Para tanto, foi essencial a presença do ator Rodrigo Mercadante no papel principal. Grande admirador e conhecedor do autor paulistano, Rodrigo já interpretou a figura de Mário em diversas peças teatrais e performances, mas inicialmente relutou em se candidatar a protagonista do filme. “Na época dos testes, eu tinha 48 anos e me achava velho demais para viver um homem de 33. Foi o Luiz Antônio Rocha, amigo meu e do Murilo, que me incentivou”, conta. Ele gravou um vídeo-teste cantando “Viola quebrada”, composição de Mário, e recitando um texto autoral a partir de uma das cartas do autor ao amigo Manuel Bandeira.
“Minha relação com ele sempre foi profundamente afetiva. Mais do que um estudo acadêmico, tenho nele uma conexão íntima, que temos com certos autores pela vida, uma identificação pessoal e um tipo de convivência imaginária que ultrapassa o trabalho profissional”, descreve Rodrigo. Para ele, o filme captura a contradição fundamental do personagem: um intelectual profundamente ligado ao Brasil e também crítico de suas idealizações. “O Brasil é uma parte dele, assim como ele mesmo construiu um Brasil para si e dividiu conosco”, reflete. A ambiguidade percebida pelo ator está no tom adotado pelo filme, que alterna o lírico e o satírico para se aproximar do espírito modernista e da mescla de alta cultura e cultura popular que tanto encantava o escritor paulistano.
Desde o registro original, a obra transcendia o gênero do diário de viagem, na alternância espirituosa de comentários etnográficos, divagações filosóficas e desvios ficcionais, sempre sob a pena sarcástica e apaixonada do autor. A natureza multifacetada do material ecoa na abordagem cinematográfica de Murilo Salles pela fragmentação da montagem, na reapropriação e transfiguração de cenas e num despojamento consciente de quem sabe o que pretende ao tratar uma obra e um autor com quem, hoje, temos bastante intimidade. Assim como Mário de Andrade no barco pela Amazônia, os espectadores do filme são também aprendizes, num contato tão íntimo quanto renovado com uma paisagem estética de constante encantamento.
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