Alimentação,

Comer não é fácil

Três livros acertam ao tratar da nutrição sem reduzi-la a questões biológicas, apesar de tropeços metodológicos e tom panfletário

15nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18

Segundo a Universidade Cornell (Estados Unidos), uma pessoa toma, em média, duzentas decisões diárias sobre o que vai comer. Tem à disposição um vasto repertório de advertências complexas, às vezes contraditórias, quase sempre mal divulgadas, sobre o que engorda ou emagrece, o que aumenta ou diminui o risco de doenças, o que levará o corpo ao limite da imortalidade ou o planeta à ruína. Comer não é fácil.

Não faltam nas livrarias lançamentos voltados para os profissionais de nutrição e de saúde coletiva, para quem se atormenta com o que ou quanto pode ou deve comer, e para a militância crítica do modelo neoliberal do agronegócio e da indústria alimentícia. Entre elas, três obras recentes têm o mérito de tratar a alimentação como uma experiência não apenas biológica e analisam suas implicações culturais, comportamentais, políticas e ambientais.

Em Nutrição e saúde pública: produção e consumo de alimentos, as organizadoras, Flavia Mori Sarti, economista e nutricionista, e Elizabeth da Silva Torres, engenheira agrônoma e doutora em ciência dos alimentos, oferecem uma perspectiva multidisciplinar sobre a cadeia produtiva e o mercado consumidor de alimentos.

Os números expostos no livro chamam a atenção. A produção mundial saltou de 3 bilhões para 9,5 bilhões de toneladas entre 1961 e 2011, mas cerca de 10,9% da população vive em estado de insegurança alimentar, sem opções nutritivas em quantidades adequadas. Falhas de distribuição, políticas comerciais e um escandaloso desperdício explicam, em parte, esse cenário. Em 2011, 523 milhões de toneladas de comida foram para o lixo. Um terço das perdas ocorre entre a colheita e o varejo. O Brasil, vice-campeão mundial de produtividade, tem a dianteira no desperdício: é impressionante o crescimento vertical da curva de perdas entre 2006 (20 milhões de toneladas) e 2011 (152,6 milhões de toneladas) — fenômenos que o livro, infelizmente, não explica.

A demanda por alimentos deve aumentar entre 100% e 110% até 2050, e o planeta passará por expressivas mudanças climáticas, demográficas e geopolíticas. Analisar a insustentabilidade do modelo atual no contexto da saúde pública é essencial, e a obra abre o debate com sobriedade.

O negócio da comida: quem controla nossa alimentação?, da socióloga e ativista espanhola Esther Vivas Esteve, aborda questões inadiáveis como biodiversidade, agrotóxicos, alimentos transgênicos e o monopólio agroindustrial. Propõe desvendar “as entranhas do sistema agroalimentar capitalista”, mas seu estilo panfletário maltrata a paciência do leitor. Há slogans demais para pouco pragmatismo. Embora ensaie uma defesa preventiva da pecha de romantismo, o mundo almejado pela autora é uma utopia pastoral, frustrada por um conluio espúrio entre cientistas, governantes e o capital.

A exposição gradual e consistente pode despertar o gosto por comida ?in natura?, amarga ou azeda

Satisfazer a demanda por carne em escala industrial e por alimentos não sazonais ao longo do ano gera uma extensa pegada ecológica, mas esses conceitos ainda são muito abstratos para o público. Você é o que você come, mas também come o que você é. Bem ou mal, o padrão alimentar ocidental é símbolo de status em muitas regiões do globo. Abrir mão desse estilo de vida não dependerá de mero convencimento, como a visão simplista de Esteve sugere.

Outro problema da obra é o uso de dados já rechaçados pela comunidade científica. Sobre transgênicos, é citada uma pesquisa de grande repercussão que associou tumores em ratos a uma dieta de milho geneticamente modificado. O periódico responsável pela publicação se retratou posteriormente, entre outros motivos, pelo uso, no estudo, de animais com propensão genética ao câncer. Polêmicas antigas sobre a segurança do aspartame e do glutamato monossódico são reavivadas com base em fonte única, um pesquisador financiado pela indústria homeopática, fornecedora de produtos detox. A falta de rigor científico expõe causas justas e urgentes à antipatia e à desconfiança.

Resta a relação pessoal com a comida. Em Como aprendemos a comer, a jornalista e historiadora Bee Wilson propõe uma “adaptação hedônica” no modo como nos alimentamos. “Saboroso” e “saudável” não são atributos mutuamente excludentes, portanto ninguém está fadado a comer mal. Preferências alimentares são aprendidas, não inatas. Para conseguir mudar o que comemos, sustenta Wilson, é preciso antes mudar o que nos agrada.

Se, na primeira infância, a formação do paladar é mais sensorial, a partir dos cinco anos os estímulos externos passam a interferir mais nas escolhas — e essa seria uma fase crítica para sedimentar bons e maus hábitos, segundo o livro. Argumenta-se, com razão, que a variedade limitada dos cardápios infantis pode inviabilizar o surgimento de um comensal versátil no futuro.

Não é possível aprender a gostar de algo que nunca se provou. Além disso, o paladar acostumado aos sabores potentes de batatas fritas e refrigerantes terá dificuldade em detectar outros, mais sutis. A boa notícia é que a exposição gradual e consistente a diferentes sabores e texturas pode despertar o gosto pelas comidas in natura, amarga ou azeda.

A obra também discute como nos distanciamos dos sinais físicos de fome e saciedade. O hábito de fazer dietas, utensílios grandes, porções exageradas e a cultura de “raspar o prato” são exemplos de fatores que se sobrepõem à satisfação fisiológica e psicológica, restringindo ou aumentando o tamanho das refeições. Com notável habilidade para pesquisar e traduzir as evidências mais atuais, Bee Wilson aponta saídas em novas abordagens comportamentais adotadas na nutrição, como a entrevista motivacional e o comer com atenção plena (mindful eating).

“As coisas não mudam, nós mudamos”, diria Henry David Thoreau. As respostas aos dilemas alimentares modernos, individuais ou globais, dependem, antes de tudo, de fazer as pazes com a comida.

Quem escreveu esse texto

Camila Lafetá Sesana

É nutricionista comportamental.

Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.