Alimentação, Divulgação Científica,
A redenção da carne
Repleto de curiosidades, livro reavalia problemas relativos ao consumo de gordura
01maio2017 | Edição #1 mai.2017A nutrição é uma ciência jovem, com pouco mais de cem anos. Entre as suas dores do crescimento há modismos, desinformação e pânicos morais.
Quando os resultados de pesquisas são tratados como dogma, como é frequente se o assunto é nutrição, a confusão do público é inevitável. Assim se construiu a hipótese que ligou o consumo de gorduras (especialmente as saturadas) a doenças cardiovasculares, cuja história é reconstituída quase em ritmo de livro policial pela jornalista Nina Teicholz em Gordura sem medo.
Tal como o ovo, que desceu ao inferno do colesterol para ser redimido décadas depois, a gordura saturada já ensaia o retorno à mesa. É surpreendente conhecer os bastidores de sua condenação: o estrelismo de Ancel Keys, epidemiologista que liderou o processo, os seus impressionantes erros de metodologia, a supressão deliberada de dados e o banimento editorial de seus críticos.
Uma vez que a recomendação da dieta de baixo teor de gordura (consumo reduzido de carnes e ovos, preferência por frango, peixe e laticínios desnatados ou semidesnatados) foi encampada pelas autoridades de saúde americanas das décadas de 1950 a 1970, qualquer recuo atingiria a credibilidade de instituições poderosas como o NIH (National Institutes of Health). Já havia sinais de que substituir gordura por carboidratos refinados poderia ser nocivo. Ainda assim, iniciou-se, na opinião de um entrevistado, um “experimento não controlado” com os americanos, que depois ganhou uma escala global.
O livro também resgata o nascimento da “dieta mediterrânea”. Entre 1958 e 1964, Keys comparou padrões alimentares e prevalências de doenças cardíacas de Grécia, Itália, Espanha, Finlândia, (ex) Iugoslávia e Japão. Em meados da década de 1980, duas cientistas resgataram os dados por ele coletados nas ilhas de Creta e Corfu para tentar detectar um padrão alimentar comum na região — “um empreendimento impossível”, pela fragilidade dos dados, como uma delas reconheceu mais tarde. A dieta baseada em azeite de oliva, peixes e vegetais teria resultado da união de outro grande nome da nutrição, Walter Willett, e de Greg Drescher, fundador da Oldways, um “think tank de questões alimentares”.
Durante onze anos, Drescher organizou conferências para promover a dieta em lugares paradisíacos, onde se discutia de ciência a cultura helenística, e os participantes assistiam a demonstrações de técnicas regionais de cozinha e dormiam com “orquídeas sobre os travesseiros”.
O infarto do presidente Eisenhower em 1955 catalisou a demonização das gorduras saturadas
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A política de redução de gorduras saturadas também seria a responsável, segundo a obra, pela entrada das gorduras trans (presentes em óleos vegetais hidrogenados) na formulação de quase todos os alimentos processados a partir do final dos anos 1970. A literatura sobre as gorduras trans é marcada pela dissonância entre dados favoráveis e desfavoráveis, estimulada por trabalhos financiados pela indústria, a fim de criar um “clima de incerteza”. Uma meta-análise publicada em 2015 pelo British Medical Journal concluiu que sua ingestão está associada a maior mortalidade por doenças coronarianas e cardiovasculares.
O tom de libelo contra a recomendação nutricional dominante e o fato de Teicholz ser jornalista gerou alguma rejeição ao livro no meio científico. No entanto, uma crítica publicada no BMJ, que reviu muitos artigos citados no texto, elogiou sua análise “notável” da interação entre “má prática científica, personalidades fortes, interesses comerciais e conveniência política”.
Repleta de curiosidades irresistíveis para quem se interessa pela história da alimentação — como o infarto sofrido pelo presidente Dwight Eisenhower, em 1955, que catalisou a demonização das gorduras saturadas —, é uma obra que interessa a leigos e mexe com os brios da nutrição e suas certezas inabaláveis.
Da tentação da certeza não escapa nem a autora, que acaba por escorregar nos erros que aponta nos outros, condenando os carboidratos e o açúcar ao status de inimigos a serem combatidos. Assim como Keys, ela poderia ter mais cautela e — sobretudo quando se fala de comida — moderação.
Matéria publicada na edição impressa #1 mai.2017 em maio de 2017.
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