Divulgação Científica,
A matemática é pop?
Movimento para avivar a disciplina inclui um festival lotado, livros de divulgação científica e até de ficção, além de um sólido projeto nacional de Olimpíadas
12set2024Lotação esgotada. Atividades interativas com longas filas. Hordas de gente jovem circulando entre estandes e palcos. Bienal do Livro? Lollapalooza? Nada disso. A descrição tenta dar conta do que foi a terceira edição do Festival Nacional de Matemática, que ocupou a Marina da Glória, megaespaço de eventos no Rio de Janeiro, entre 5 e 7 de setembro. Estaria a matemática ganhando ares pop? Se a resposta for sim, isso seria suficiente para fazer a ciência exata deixar de assustar parte da população?
Para investigar a questão, precisamos voltar um pouco no tempo. De uns anos para cá, perfis nas redes sociais se dedicam a tratar, de maneira leve, de questões da disciplina mais temida do currículo escolar. Um exemplo é o mineiro Rafael Bastos, doutor em estatística que imita Mr. Bean, personagem da série inglesa dos anos 90, enquanto resolve equações matemáticas para seus 8 milhões de seguidores no TikTok. Mas há também ações formais. Em 2017, embalado pela recepção de dois eventos internacionais, o Brasil instituiu o Biênio da Matemática, referendado pelo Congresso Nacional. O objetivo era iniciar um conjunto de ações até 2018, visando aproximar a matemática da sociedade. Naquele primeiro ano, aconteceu a estreia do festival — a pandemia fez a segunda edição acontecer só em 2022, e a ideia é seguir com edições bienais.
Mas o evento, que neste ano bateu recorde de público atraindo 20 mil pessoas ao mostrar o impacto da matemática em ações de inovação, foi apenas uma das ações estratégicas do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa) — maior referência da disciplina no país. Também em 2017, a matemática sofreu uma guinada em termos de comunicação: foi tema de diversas reportagens na imprensa, virou série no Jornal Nacional, na TV Globo, e ganhou uma coluna semanal na Folha de S.Paulo, assinada desde então por Marcelo Viana, diretor-geral do Impa.
‘Descobri que Moby Dick está cheio de referências matemáticas, coisa que não percebi na minha leitura quando era jovem’
A prática da escrita para um público leigo abriu os horizontes do acadêmico, vencedor em 2016 do prêmio Louis D. (principal premiação científica da França): além de contar números, ele passou a contar casos e curiosidades por trás deles. Este ano, lançou Histórias da matemática: da contagem nos dedos à inteligência artificial (Tinta-da-China Brasil, selo editorial da Associação Quatro Cinco Um) — que já teve trecho e resenha publicados na revista. São os textos de jornal revisados e muitas vezes ampliados, organizados de maneira cronológica para explorar a trajetória dessa área do conhecimento, da Antiguidade ao século 21, passando pela Idade Média e o Renascimento.
Em ‘Histórias da matemática’, autor desvenda para o leitor não apenas a relevância da disciplina, mas também seu encanto; leia trecho
Matemático premiado, Marcelo Viana reúne crônicas em que trata teoremas como conversa de bar e ajuda a popularizar a disciplina
Mais Lidas
“Achei que a coluna duraria pouco, considerava que eu era muito ocupado na época em que comecei a escrever. Mas acabou virando um vício. Isso me obrigou a conhecer personagens, rever conceitos. Descobri, por exemplo, que Moby Dick está cheio de referências matemáticas, coisa que não percebi na minha leitura quando era jovem. Me sinto melhor informado sobre minha própria ciência”, contou Viana à mediadora Carla Almeida no debate realizado num palco no meio do festival, entre uma partida de futebol de robôs e um estande de realidade virtual.
A outra convidada na mesa intitulada “Números, livros e inovação” era Marcella Faria, uma presença mais inusitada, por não ser nativa da matemática nem da literatura. Bióloga, ela é autora de Números naturais (Editora 34), livro de contos ficcionais que exploram conceitos matemáticos de maneira surpreendente. No sumário, o primeiro texto leva o número zero. O último, o símbolo do infinito. Entre eles, doze em contagem progressiva e doze na regressiva, com abordagens que podem dialogar de maneira direta ou sutil com os numerais. “Às vezes gosto mais do mecanismo por trás da obra do que da temática em si”, afirmou ela, contando ser fã de autores como Ítalo Calvino, Jorge Luis Borges e Gonçalo M. Tavares.
Quando participou da Feira do Livro (festival literário da Associação Quatro Cinco Um), em São Paulo, no mês de junho, Viana começou a conversa refletindo sobre o que significa para um matemático participar de um evento literário: “É um manifesto contra a antítese entre ciências humanas e ciências exatas”, afirmou. Coerentemente, dois meses depois participava de um debate de livros no festival de matemática. Tanto ele quanto a outra autora da conversa mostram, em suas obras, como a linguagem das palavras e a dos números podem se ligar.
No conto número zero, “Conjunto vazio”, Marcella Faria brinca com o conceito de “nada”:
Na matemática há várias definições de zero: 0 é o número inteiro imediatamente anterior a 1. Zero é um número par porque é divisível por 2 sem resto. Zero não é positivo nem negativo, ou é ambos, positivo e negativo ao mesmo tempo. Na teoria dos conjuntos, 0 é a cardinalidade do conjunto vazio; se alguém não tiver jabuticabas, terá 0 jabuticabas. Nada é conjunto. […] Agradecia os favores e as gentilezas. Por educação, repetia: obrigada por tudo. Por educação, respondiam: por Nada. Achava engraçado, o automatismo da fórmula. Nada é reflexo.
Já na coluna “Porta dos Fundos, Descartes e o X da questão”, publicada na Folha de S.Paulo em 21 de setembro de 2021, Marcelo Viana parte de um vídeo do grupo de humor para abordar os vários usos da letra X na matemática: incógnita da equação, símbolo da multiplicação, algarismo 10 na numeração romana… Em relação à incógnita mais popular, ele explica:
A razão de x ter prevalecido sobre y e z é conhecida e muito curiosa. Ao montar o livro para impressão, o compositor notou que alguns tipos (letras) estavam acabando. Como Descartes disse que não importava qual dos três fosse usado em cada caso, o compositor priorizou o x nas equações, porque y e z são mais utilizados em francês.
Mas Marcelo tem consciência de que aproximar a sociedade da matemática tem desafios mais complexos que oferecer o contexto e histórias a leitores ou alunos. Objetivamente, afirma que o Brasil tem uma escassez de matemáticos no mercado. E que para haver investimento é necessário que as pesquisas deem retorno para a sociedade. “Por outro lado, temos que tomar cuidado com os termos utilitários, com a pergunta ‘para que serve?’. A teoria da relatividade só pôde ser escrita porque Einstein conseguiu usar elementos da matemática que foram elaborados cem anos antes”, exemplificou no debate.
Medalha Fields
Há exatos dez anos, o Brasil conquistou um feito de repercussão internacional na área. Em 2014, aos 35 anos, o carioca Artur Ávila se tornou o primeiro — e até hoje único — latino-americano a receber a Medalha Fields, o maior prêmio do segmento dado a pesquisadores com menos de quarenta anos. Um feito com potencial de ser um divisor de águas na relação da população com a disciplina. “Foi importante para personalizar, mostrar que não é uma coisa abstrata. Provar que as instituições brasileiras produzem bons matemáticos”, contou por telefone Artur Ávila, que na época chegou a ser chamado pela imprensa de “popstar da matemática”.
A expectativa de que o prêmio ajudasse a dar o necessário empurrão no desenvolvimento das ciências no país, entretanto, foi frustrada. Na última década, o Brasil enfrentou sucessivas crises políticas e econômicas que comprometeram o investimento em pesquisa. “A gente não aproveitou como poderia, no momento de crise a ciência não é prioridade para nenhum governo. Precisamos de uma estrutura que entenda o tempo da ciência, que é longo, mas produz mudanças significativas”, analisou Ávila, que hoje divide a rotina entre o Brasil e a Suíça.
Num país em que as notas dos alunos no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) são baixas, um projeto de dimensão nacional é talvez o melhor exemplo de como conciliar resultados práticos e simbólicos em relação à disciplina. Realizada desde 2005, a Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP) — que, apesar do nome, há sete anos abarca também os colégios particulares, com premiação separada — tem uma capilaridade rara, atingindo 99,9% dos municípios do país.
Marcelo Viana e Marcella Faria mostram, em suas obras, como a linguagem das palavras e a dos números podem se ligar
Sólida apesar dos altos e baixos nos investimentos na educação do país — a iniciativa é do Impa, com recursos dos ministérios da Educação e de Ciência e Tecnologia — a Olimpíada está contando na edição de 2024 com a participação de mais de 18 milhões de jovens, a partir da sexta série. A experiência é considerada tão positiva que agora há também uma versão mirim. Na visão de Marcelo Viana, trata-se de uma das mais bem-sucedidas experiências de aproximação da matemática com a sociedade:
“A Olimpíada não resolve nossos problemas educacionais. Mas temos medalhistas ganhando bolsas e sendo estimulados a ingressar nas universidades. São várias as histórias individuais transformadas por conta das medalhas, e não é raro que isso beneficie um conjunto da população, sobretudo de cidades pequenas. O maior impacto, entretanto, é o que ouço das famílias, independentemente das conquistas: elas passam a ver os filhos estimulados, indo para a escola com vontade de aprender.”
Prestes a completar vinte anos, a Olimpíada já rende frutos geracionais. Os cearenses Jefferson Vianna e Victor Hill, medalhistas de ouro em competições entre 2007 e 2011, hoje estão consolidados no mercado de trabalho e criaram, em 2019, a Associação Cactus, ONG que faz parcerias com prefeituras para preparar alunos e professores para as competições. Em 2023, jovens envolvidos nas atividades da organização ganharam 22 medalhas de ouro, 121 de prata e 121 de bronze, além de 8 408 menções honrosas. De acordo com o Data Insper, os resultados já começam a impactar os resultados do Ideb dos municípios envolvidos.
Porque você leu Divulgação Científica
Quando começamos a ler o mundo?
Livro-imagem de autores latino-americanos sobre período-chave da evolução humana é uma ode à arte e à sensibilidade das crianças
SETEMBRO, 2024