Erótica brasiliana

Sexo no feminino,

Erótica brasiliana

Quatro poetas contemporâneas compartilharam escritos inéditos sobre tesão, sexo e gozo

01ago2024 • Atualizado em: 09ago2024 | Edição #84

Bruna Beber

Ainda assim

Escrevi escrevi não pedi
que escrevessem
encomendei seu nome
num grão de arroz

No banco de trás do táxi
aquele sábado de março
considerei pulseiras prendedores
de cabelo rebolando nos punhos

Nuvens de sardas e o vermelho
em tudo sempre o vermelho
adorando e gostando de adorar
sobretudo o roído das unhas

Nos dedos um saco de lixo
sem título de uma loja do Pari
intuição vassouras pregadores
de roupa dois garfos pratos nada

Mãos de gancho empuxam
a memória que já tenho
de sempre amar ter amado adorado você
você vou comer vou louvar ser comida

Tudo mais que escrevo
é desidratação e olhando
aquelas mãos calcei os óculos
escuros e agora é fácil concluir

aquilo tudo aconteceu
aconteceu ali e aconteceu
depois o grão de arroz
ficou pronto rapidinho.

Mar Becker

Sem título

não fosse cada sinal
cada imperfeição
não fosse meu ombro ainda marcado pela alça
a etiqueta da calcinha aparecendo
o fio de estria

não fosse a linha solta na
barra da blusa
e parte das minhas costas à mostra
e teu olhar quando desce e descobre que, em tamanho
são consideravelmente desiguais as
minhas covinhas de vênus

não fosse cada pequeno insulto da forma
tu me tomarias imaculada
mulher a ser pintada numa tela —
como a virgem do prado de rafael

não chegarias perto
não terias nem coragem
de tocar
(muito menos contornar meu cuzinho
assim com a língua
com tinta tão sem valia
quanto teu cuspe)

Trinca de poemas

o professor aquele que no último
ano corrigiu minha redação dizendo que
aréolas não são auréolas —
“porque não se misturam jamais
mulheres e anjos” —
ele não via os
teus seios
camile

Gabrielle d’Estrées and one of her sisters (c. 1594), por artista desconhecido. Óleo sobre madeira

gosto de pensar que mulheres têm caixas torácicas mais frágeis — são mais porosos que os deles, os ossos delas — porque nelas a vida em toda a sua estrutura segue até o fim rebelando-se a servir para o que quer que se pareça com engaiolar uma ave

… acabo de receber teu livro, isabela, é o primeiro que recebo envolto em pano, cetim; quase depreendo disso o teu desespero, que é meu também — o velame de uma busca por secretude. toco esse objeto que não compreendo, e que parece ostentar uma corcunda sobre si, uma mudez acorcundada. o pouco dele que se devolve a mim vem como dopado de desejo, sempre fui da intuição de que objetos embrulhados em tecido — especialmente tecidos lisos, que escapam à mão — ganham nisso uma espécie de sexo, de avulvamento

Adelaide Ivánova

Escorreguei no ky

juro em Cristo
isso não é piada
não caí como um patinho
caí como nos filmes
pernas pra cima no chão do banheiro 
me machuquei muito
na casa que habito
mas que não é minha

Dias depois queimei a sopa 
juro em Cristo
queimei uma sopa
isso não é piada
achei que tinha desligado o fogão 
mas tinha colocado o fogo no máximo
e fui inocente ao banheiro
fazer meu spazinho:
pus os pés na água quente 
a água quente num baldezinho
lixava as unhas com minha lixinha
pus máscara facial pra diminuir as ruguinhas
e no cabelo, pra cobrir os fios brancos, tinta

Rokeby Venus (1644), de Diego Velázquez. Óleo sobre tela

Quando senti cheirinho de queimado
primeiro achei que era a amônia
deixa estar que era a caçarola
não liguei, segui me lixando
e lixando minhas unhas
quando dei por mim estava tudo enfumaçado
saí correndo nua para cozinha, assim:
máscara facial feito Cher nas fotos 
a tinta ainda no cabelo e só as unhas 
esquerdas já pintadas de vermelho
pra ver queimar uma sopa de lentilha

Aspirei tanta fumaça que achei fosse morrer
mas só tive uma crise de asma
me recusei a ir ao hospital
pra ver se tive sequelas
de um ou dos dois acidentes
pois, imigrante, sempre me tratam mal
passei dias endoidando
que os dois auês domésticos
foram castigo divino
pela minha vaidade
ou por me masturbar
de vez em quando
na casa que habito
mas que não é minha
(mas entendo que isso é bobagem)

Flora Lahuerta

I feel so much love when I imagine it (ძალიან დიდ სიყვარუკს ვგრძნობ, როდესაც ამას წარმოვიდგენ)

entre nós
há telas riscos satélites
5895 km
457 euros
14 horas de escala

ainda não farejamos as peles
mas os corpos se conhecem
em ângulos esdrúxulos
olhos cortes caracteres
território vasto
e irritantemente raso
onde pixel é baba

vc mandou foto do pixo no muro em Tbilisi
(a mão borrada de tinta
me deixou pixelada)
Tbilisi fica na Geórgia
vc se chama Giorgi
era dia de São Jorge
quis te falar de Jorge Ben
da Juçara Marçal
o gole da cachaça esguicho no ar
mas era tarde
ou cedo demais
acordo com o refrão da canção pop que ainda não escrevi
Eu quero sentaaar
No Giorgi da Georgiaaahh

já dizia a safada da Safo que eros é falta
então para quê comer os pasteizinhos de nata
se podemos ter a amargura do impossível
em forma de nude sem cabeça com pau deliberadamente censurado com rabisco
e as tatuagens cadeeiras mais adoráveis
o vinho maturando na ânfora
8 mil anos de espera

no anseio do kharcho fumegante
servido à mesa
te ensino português com stickers
Levemente umedecida
Não vejo a hora
Música dramática
Chorrindo

vc me dá um alfabeto
que parece um campo florido
33 letras bordadas
em curvas de montanhas
i feel so much love when I imagine it”

vc fuma um cigarro atrás do outro
eu detesto cigarro
mas amo contemplar sua boca
soprando névoa
até embaçar a tela toda
(fosse na minha sala deixava acesa
só a tua brasa)

quando de súbito
meu caso do Cáucaso
sumiu por dez dias
fiquei despixelada

Detalhe da pintura ‘Uma alegoria com Vênus e Cupido'(c. 1545), de Bronzino. Óleo sobre tela

tentei date de carne e osso
pra esquecer Jorginho
não funcionou
era um boy americano
where in the usa? perguntei
respondeu
Georgia

vaguei pelos cantos chorrindo
cantando Giorgi on my mind
até a ligação cortada
de revival
e o delay ei ei ei
reverberando
ay ay ay

vc tinha sido preso
nas manifs
pró-união europeia
o lábio ferido no murro
as línguas famintas
quase lambendo a câmera
baba suor e saudade

entre nós
meu bem
há isso que não tem nome
e toda uma nova guerra fria

ao som de
post-industrial boys
e sex pixels
tramamos o incêndio
das fronteiras
a união das nossas linhas costeiras
antes da queda dos céus
e dos sinais

Quem escreveu esse texto

Bruna Beber

Escreveu Ladainha (Record) e Zebrosinha (Galerinha).

Mar Becker

É autora de Cova profunda é a boca das mulheres estranhas (Círculo de Poemas).

Adelaide Ivánova

Poeta, é autora de Asma (Nós).

Flora Lahuerta

Poeta, é autora de Língua solta (Urutau). 

Matéria publicada na edição impressa #84 em agosto de 2024.

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