A filósofa francesa Catherine Malabou (Divulgação)

Sexo no feminino,

Clitóris intelectual

Filósofa francesa reivindica a centralidade do órgão feminino em um novo pensar filosófico, mas subestima suas possibilidades mais prazerosas

01ago2024 • Atualizado em: 02ago2024 | Edição #84

Alguns anos atrás, o então ex-presidente Lula indagou onde estavam “as mulheres de grelo duro do nosso partido”, reivindicando a valentia de suas correligionárias. A expressão ainda está no imaginário de alguns marmanjos, mas a filósofa francesa Catherine Malabou, autora de O prazer censurado, certamente questionaria a escolha de Lula. Ela diria (com razão) que recorrer à imagem desse órgão feminino para se referir a qualidades associadas à virilidade, e representadas pelo masculino falo, seria perpetuar o apagamento de sua singularidade.

Esse apagamento e essa singularidade são os objetos de seu breve livro, que leva o subtítulo “Clitóris e pensamento” e transita por momentos cruciais em que o órgão feminino se manifestou — ou foi calado — ao longo da tradição ocidental. O principal alvo de questionamento da autora é o vício de se definir o clitóris a partir de sua relação paradoxal de identificação e distanciamento tanto com o pênis quanto com a vagina. Forma atrofiada do primeiro ou subordinado à segunda, esse (não tão) pequeno órgão seria uma “pedra no sapato” do pensamento, e um obstáculo à saúde, ao imaginário sexual e à subjetividade das mulheres.

Ao longo dos capítulos, Malabou se dedica a tentar nos convencer de que a distância anatômica e psicomorfológica do clitóris em relação aos outros órgãos sexuais é índice de uma autonomia também social e política — ele não penetra nem é penetrado e se esquiva de qualquer exigência de
funcionalidade reprodutiva. Esse distanciamento tem que ser mantido, esclarece Malabou, como imperativo de independência e como abertura simbólica a um novo pensar filosófico, que ela associa ao feminino e que escapa às dinâmicas de poder.

Com o qualificativo “feminino”, a autora não designa apenas as mulheres, mas a experiência de desafio permanente às imposições da heteronormatividade: “Um feminino de subjetivação”. Na sua proposta de desapagamento do clitóris está embutida a entrada dele no pensamento ocidental como alegoria política.

Malabou questiona o vício de se definir o clitóris em relação paradoxal tanto com o pênis quanto com a vagina

“Meu clitóris já tinha uma existência dupla, de sexo e de gênero, anatômica e social. A filosofia adicionou a existência política de um clitóris transgênero”, afirma Malabou ao relembrar seu percurso como mulher (cis) em diálogo com a tradição masculina. Justamente porque se esperaria ouvir mais do corpo, o movimento da argumentação incomoda: ao conduzir quem lê a concluir que o papel mais produtivo desse órgão é simbólico, o livro acaba por mais uma vez mitigar o potencial revolucionário do gozo.

Antes de chegar até lá, contudo, a autora traça um percurso que faz valer a leitura. Praticamente ignorado até meados do século 20 como objeto de atenção médica e científica (ainda que sua existência seja conhecida pelo menos desde a Grécia antiga), o clitóris “desorienta dicotomias”, escreve a ex-orientanda de Jacques Derrida, na boa tradução de Célia Euvaldo. Em razão de seu formato — a parte visível é só uma pequena seção —, o órgão funciona sob uma “dupla orientação erótica”: a vagina penetrada o estimula internamente pelo vaivém, enquanto o estímulo direto, bem, todo mundo sabe ou imagina o que o estímulo direto faz.

Ninfas

Para Malabou, o silenciamento pelo qual passou o clitóris é muito bem representado pela figura das ninfas, divindades gregas descritas por vezes como corpos femininos sem instinto sexual próprio — vale lembrar Dafne, que, fugindo aos avanços de Apolo, pede aos deuses para não ser mais um corpo desejável e é convertida em um loureiro. “Ninfa” é também o termo usado para se referir a cada um dos pequenos lábios da vulva, frequentemente confundidos com o clitóris pelos anatomistas até o século 19.

No imaginário cultural, a ninfa mitológica é “pura imagem”, escreve Malabou. Imaterial, ela é “a mulher convertida em ideia” — uma visão que já havia sido denunciada por Simone de Beauvoir. É, aliás, com as pensadoras feministas anteriores à virada rumo às teorias de gênero que O prazer censurado estabelece sua interlocução mais interessante e corajosa. Apoiadas em alguns pressupostos da fisiologia depois criticados por supostamente estabelecerem uma identidade fixa da mulher, Beauvoir, Françoise Dolto, Carla Lonzi e Luce Irigaray, entre outras, são evocadas por terem sido as primeiras a ter a “audácia” de deixar o clitóris “falar”, confrontando a filosofia e a psicanálise.

Na “erótica existencial” de Beauvoir, Malabou identifica uma persistente subordinação do prazer clitoriano ao vaginal. Já para Carla Lonzi, que a filósofa traz em outro capítulo, não há dúvida de que é a vagina quem deveria reconhecer os superpoderes do clitóris. Fundadora do feminismo radical italiano, nos anos 70, Lonzi recusou a ideia de subordinação para pensar as relações feminino-masculino e vagina-clitóris. Com ela, resume Malabou, “a tarefa do feminismo” passa a ser “questionar a ideia de uma existência do poder a priori”.

Substituir o par dominação-submissão pela noção de diferença: essa seria a chave, e o clitóris, seu representante. Em uma das proposições mais estimulantes do livro, a autora faz coro a uma questão que ainda afeta nossa realização sexual: é preciso superar o mandamento tácito do imaginário erótico segundo o qual o clitóris é um órgão de masturbação — em seu viés de experiência solitária —, e não de relação sexual. O desafio com que Lonzi e Malabou nos deixam é o de escapar à educação sexual que recusa a “inutilidade” e reitera o caráter contingente do orgasmo feminino.

O prazer censurado evoca a psicanalista e filósofa Luce Irigaray — que afirmava a existência, nas mulheres, de uma “geografia de seu prazer” mais diversificada, fora da dicotomia vagina/clitóris. Malabou vê ainda na autora belga, porém, a persistência da diferença sexual, com feminino e masculino muito demarcados, e a atenção que Irigaray dá à imagem dos lábios (às ninfas) tem bastante a ver com a crítica.

As condições sobre as quais se assentou o paradigma do prazer vaginal em detrimento do clitóris estão claras, mas a insistência no protagonismo absoluto deste quase transforma a vagina em uma espécie de agente dupla, que finge servir ao prazer feminino para corroborar o modelo falocêntrico. Serão a função socioeconômica da reprodução e a simbologia de poder as únicas explicações para a permanência de certo ideal de prazer vaginal como indissociável da realização sexual? Ou a penetração poderia ter um outro sentido, de conexão? Ou conceber essa possibilidade já é uma cilada; e eu, uma má feminista?

Responder perguntas como essas escapa ao objetivo principal de Malabou, que está menos interessada em conceber o clitóris como fonte de gozo do que como conceito. Seu intuito declarado é “pensar o clitóris, ou melhor, deixá-lo pensar”, como dirá mais adiante, reivindicando “uma zona clitoridiana do logos”, seja lá o que isso quer dizer. Algumas coisas se perdem pelo caminho, e conhecimentos de biologia são algumas das vítimas. A autora sugere, por exemplo, que em todos os mamíferos quadrúpedes o clitóris fica perto da vagina, sendo estimulado pela penetração, que desencadeia o orgasmo e a ovulação ao mesmo tempo. Achei estranho e fui estudar melhor.

Evolucionismo

No artigo “The Evolutionary Origin of Female Orgasm” (“A origem evolucionária do orgasmo feminino”), os médicos evolucionistas Günter Wagner e Mihaela Pavlicev me ensinaram que, entre as diferentes mamíferas, há diversas posições possíveis para o clitóris e que a ovulação pode ser espontânea ou desencadeada pelo coito. Sim, sua cachorrinha tem um clitóris e, se você nunca o viu, é porque ele fica encaixado dentro da vagina — e portanto é estimulado diretamente na penetração.

Antes que você inveje a fortuna da pequena, é bom lembrar que esse mecanismo só é acionado umas duas vezes por ano, por cerca de dez dias, durante os quais ela ovula espontaneamente. Sua gatinha tem um pouco mais de sorte, talvez: ela entra no cio a cada dois meses, e nela o clitóris fica na beirada da vagina, uma posição boa o bastante para que a estimulação ali mande mensagens para o cérebro, que produz os hormônios que a fazem ovular. Nos dois casos, porém, sexo só para reproduzir, com dias marcados. Não há mamífera completamente bem-aventurada.

As fêmeas humanas compartilham com outras primatas — e também com roedoras e até com a fêmea de uma espécie de tatu — o infortúnio do clitóris distante da vagina. Por que então o prazer proporcionado por ele? Uma primeira hipótese seria a de que, como pênis e clitóris são indistinguíveis no feto até cerca de nove semanas após a concepção, o prazer feminino seria um simples efeito fortuito: o orgasmo masculino é incontornável para a reprodução e teríamos herdado por sorte tal disposição. Essa hipótese é a menos provável, mas isso não justifica a não menção, por Malabou, à origem embrionária compartilhada. A hipótese mais aceita é a evolutiva, que localiza na subordinação prévia à reprodução a origem do gozo clitoriano: em algum estágio anterior da nossa evolução, o clitóris teria sido próximo ou interior à vagina e, quando estimulado, produziria o orgasmo que, por sua vez, dispararia a ovulação. Como nas gatinhas. E nas coelhas, coalas, fêmeas de porco-espinho…

Mas as consequências infelizes dessa evolução da fisiologia reprodutiva podemos e devemos consertar via discernimento, certo? Se o gozo feminino não é condição sine qua non para que do sexo resulte um rebento, as coletividades deveriam ter arrumado outros motivos para fazer jus ao potencial do clitóris — digamos, a saúde e a alegria de metade dos seres humano. Não é preciso transformar o clitóris em algo absolutamente independente, desde a origem dos tempos e dos embriões, do pênis, da vagina ou da reprodução, para reivindicarmos a legitimidade do gozo que ele proporciona. “O clitóris é um anarquista”, escreve Malabou. Talvez seja, mas nem sempre foi assim.

Substituir dominação-submissão pela noção de diferença: essa seria a chave, o clitóris, seu representante

A autora ainda demanda o protagonismo do clitóris como o “enigmático” elemento do feminino, em contraposição à linha reta do falo, enquanto talvez fosse mais legal deixar o falo para lá, derrotado por si mesmo. Malabou escorrega, também, em lugares–comuns nocivos, como o de um trauma primordial. O feminino é uma lembrança das violências, escreve ela, afirmando que o clitóris é cúmplice desse feminino por “ambos sobreviverem a seus apagamentos, a suas mutilações”. Segundo a autora, ambos ainda projetam “o espaço político de uma indiferença à sujeição”. Ela conclui: “O feminino une essa memória e esse futuro”. Me pergunto, no entanto: o que foi feito do caráter imediato do gozo? O que foi feito do presente?

Ao fim, O prazer censurado não nos convence do potencial subversivo de sua proposta, sobretudo aos menos afeitos à fabricação desenfreada de conceitos. Reivindicar o clitóris, por sua “ingovernabilidade” (seria o pênis governável?), como “órgão de pensamento” — no qual lógica e êxtase escapam à antinomia tradicional — é colocá-lo como substituto análogo do falo — isto é, uma versão alegórica, idealizada, de um órgão que poderia servir ao gozo, mas se vê submetido à demanda de significar. “Meu clitóris está em sintonia com meu cérebro”, escreve ela. Seria isso algo bom? Acho que há coisas mais interessantes a se fazer com um clitóris do que filosofar.

Quem escreveu esse texto

Ligia Gonçalves Diniz

Professora de Teoria da Literatura na UFMG e autora de Imaginação Como Presença: o Corpo e Seus Afetos na Experiência Literária (Editora UFPR).

Matéria publicada na edição impressa #84 em agosto de 2024.

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