Sexo no feminino,
Erotismo peculiar
Poética de Adélia Prado é perpassada por inocência de quem quer decifrar o mundo, sem se desvencilhar da mulher devota e provinciana
01ago2024 • Atualizado em: 02ago2024 | Edição #84Num estudo sobre Adélia Prado em 2010, Teresa Cabañas joga uma luz outra sobre os fundamentos do erotismo na poesia da mineira. A situação semântica que Prado reserva ao corpo e às relações amorosas confere a tais comportamentos uma espécie de retorno à “naturalidade inicial”. Àquilo que passou a ser desacreditado, por ser tido como “lascivo” ou “licencioso” pela ideologia burguesa, entra para o rol das puras naturalidades. De Deus.
Essa ação poética pode ser propiciada pelos saltos, de um para outro campo de significados; por algo como um hiato ou uma brecha instalada de propósito no poema (cuja leitura deve tentar preencher); pelo deslocamento súbito de circunstâncias; por uma espécie de fala oral com aparente desnorteio, na maioria das vezes narrativa, sem exibição, em tom despretensiosamente menor, mas repleta de uma fecunda sabedoria popular e litúrgica. Enfim, por algo em estado de “móbile”, que é como Augusto Massi pensa a poética de Adélia, levando também em conta o seu aparato dramatúrgico.
É de experimentar o que produz e é produzido pelo desvio e pelo desejo que se faz o prazer, o amor e a vida
A meu ver, tudo isso fica perpassado por uma “inocência” de quem vive abismada com o mundo e quer decifrá-lo, sem se desvencilhar da sua condição histórico-social de mulher devota e provinciana, extraindo, ao contrário, proveito disso.
O amor é uma espécie de apostolado, de anúncio da felicidade possível na terra à mercê da cifra divina. E Adélia empresta tudo o que é e possui para dar voz a esse ser que quer se exprimir. Ela mesma se dizendo uma “retorta de Deus”, destilando (de/cantando) em palavras (em língua que se conheça e se reconheça) mistérios impenetráveis. Esse o timbre da sua poesia — a originalidade do seu erotismo tão desafetado.
Discrição notável
Mais Lidas
No seu já célebre “Casamento”, a voluptuosidade desperta, devagarinho, à noite, na cozinha, na singeleza do formar par com o marido no trato dos peixes há pouco colhidos. Na pia, no toque ocasional dos cotovelos; no dedinho de prosa com que ele rememora o afã com os peixes no ar; no silêncio repentino que, desse encantamento, remete àquele momento em que se conheceram. De maneira que, então cumpliciados por todos esses sinais, no leito, a prateada espocada de euforia é já sensual. E aquele “rio profundo”, que atravessara a arte comum de retirada das escamas, deságua, afinal, no coito, mas numa discrição erótica notável.
Em “A batalha”, uma vez algemado o capeta nas profundezas dos infernos — o que dá a impressão de que ele conspira contra ela, só quer atormentá-la e zelar por sua infelicidade! —, Adélia pode tirar, sossegada, “o corpo da roupa” (da armadura!) para estar com o amado. Em “Medievo”, a ansiedade erótica da donzela no aguardo escuso do amado é transplantada para a inquietação dos galgos, para o
receio de alerta dos criados, para o frenesi na estrebaria. E por aí se conhece o grau da excitação lasciva da donzela. Em outro poema, num recadinho adolescente a Castro Alves, onde Adélia enxerta versos que dele teria furtado, depois de lhe fazer a corte e de enaltecer todos os dotes do bardo, ela revela, por fim, o que queria mesmo dele: “A ponta sedosa do teu bigode atrevido,/ a tua boca em brasa, Antônio, as nossas vidas ligadas” (“Bilhete em papel rosa”). E pensar que a mulher é, como declara ela, uma “espécie ainda envergonhada”! (“Com licença poética”).
No célebre ‘Casamento’, a voluptuosidade se desperta no formar par com o marido no trato dos peixes
Em outro momento, quando o amado aparece, a sua temperatura sobe feito um raio (faz, de repente, “alto–verão no corpo”) e, enquanto ela vistoria cada tiquinho do rosto amado, tudo vai se dilatando “em resinas”, o que se converte, em verdade, numa certa “tamanha abundância”; de modo que ela, extenuada, sequer percebe quando ele parte. E adivinhe você, leitor de “Memória amorosa”, por que razão Adélia refere, criando elipses no poema, as inacreditáveis unhas do amado! Porque (é o que responde meio aos buracos um outro poema, o “Não blasfemo”) ela é capaz de entalhar no amado “a beleza de Deus”: seu queixo, seu riso, o “seu modo de não me ver”. Diante de Jonathan, seu desejo resta “incansável”. E se ele a toca, então, “é no seio de Deus que eu fico”. Mas o fato é que toda essa declaração de cio procura se justificar, no poema, como uma espécie de missão particular em cumprir “o desígnio da divina vontade”!
Em órbita erótica
Ainda nessa mesma linhagem de dilucidar um mistério fornecendo-nos estilhaços semânticos dispostos a entrarem em órbita erótica, a tópica do fruto paradisíaco vem à cena. O fruto, em Adélia, toma a feição dos atributos femininos, sobretudo sexuais. Assim, por exemplo, o mamão se oferece para ser fecundado, furado, para multiplicar a euforia da posse, através das suas sementes negras que, como num aguaceiro, podem se espalhar pelo mundo gerando beleza pura. Em “Louvação para uma cor” não há constrangimento algum: o fruto colhido é um canto radioso de alegria obtido por meio do ouro, dos metais em efusão, expostos numa orquestração sensual de cor, luz, signo linguístico, formas, sons, degustação. É assim que o amarelo (de onde decorre o mamão) é “furável” pela povoação de insetos que, a meio-dia, vêm sugar o seu mel, seus “ovos”, “seu núcleo”, “o óvulo”, o mais minúsculo ponto quente a desgarrar-se da “negritude das vísceras negras”. E o poema continua: essa cor
Distende e amacia em bátegas
a pura luz do seu nome,
a cor tropicordiosa.
Acende o cio,
é uma flauta encantada,
um oboé em Bach.
O amarelo engendra.
O banho dourado da sensualidade linguística vai se esparramando pelos versos e alcança até mesmo o nome da fruta, sua sonoridade, sua origem geográfica e autóctone.
Acerca da fruta genuinamente edênica, a maçã, Adélia se manifesta. Mas, só no caso de ela estar, lispectorianamente, “no escuro” — esse o título do poema. Aqui, a paradisíaca fruta identifica o instinto, o sexo com fome, aquilo que vive e lateja da cintura para baixo, a parte que, no corpo, não pensa e apenas reage com “vagas de doce quentura”, muito embora esteja sempre na iminência de converter-se em “vulcão”. A mulher é recoberta por muitos mantos e muitas cascas, e fica contida dentro de
algo que está encerrado em outro, espécie de boneca-russa: talvez uma emblemática do mistério feminino da procriação. Veja-se, pois, como, no cômodo grande, no armazém antigo, encontram-se (claro! no escuro!):
O grão dentro das sacas,
as sacas dentro do cômodo,
o cômodo dentro do dia,
dentro de mim sobre as pilhas
dentro da boca fechando-se de fera felicidade.
Sendo, aliás, que a mulher que emerge desse casulo de tantas camadas é uma “menina-crisálida” pronta a se desvestir. Mas isso só se dará quando ela for apreendida por “pensamento de homem”, quando se descobrir “fruta” — “madura pra olfato e dentes,/ em carne de amor.”
Adélia produz, por um jogo de esconde-esconde, a imprescindível função erótica da sua poesia
Em “Leitura”, Adélia relê sua infância e o que dela finou-se; e, da maçã que, para o caso, é temporã, saberemos que esta guarda “o gosto caprichado das coisas/ fora do seu tempo desejadas”, e que a sua “casca vermelha/ de escuríssimo vinho” tem a cor daquilo para além do tempo, que permanecerá vivo e sanguíneo para sempre: a cor da vida permanente, a cor daquilo que não morre — tal qual a feliz e amada face do seu pai. Em todo caso, assim como a goiaba que a menina apanha e, inconsciente, ensina com sabedoria aos outros o seu significado (“A menina e a fruta”), as frutas de Adélia são sempre “abençoadas”, fontes de beleza e regozijo, dedos de Deus na terra, e não índices de culpa, mas isentas do pecado original: “O Reino é dentro de nós, Deus nos habita./ Não há como escapar à fome da alegria!”.
Na nêspera (“A falta que ama”) já é a cobertura sonora da fruta, o ritmo e o som do signo linguístico propriamente dito que é invocado em lugar da imagem. A nêspera realiza o
“som de leite e veludo” e ela ganha o gosto daquilo que está embutido nas suas consoantes; daí que essa sensação sonora faça nascer, afinal, “uma ave nova que voa/ sem fugir de mim”. Também a flor do fruto interessa: a da abóbora, não sendo “um lírio ignóbil”, como se poderia supor, oferece um charme poético da mesma natureza que as frutas. Porque contém a “massa de pólen”, o mel, o “óvulo de coelhas”, que acena a todos os “zangões” e “machos tolos” e até mesmo ao “nariz proletário” da poetisa.
Que venham fecundá-la! Que venham perfurar-lhe a “fina parede que mal segura a vida/ tanto ela quer viver”. E é justo essa flor que essa mulher usa para adornar (em ouro, como um sol, com “pequenas luzes esplêndidas”) o seu vestido de núpcias (“Subjecto”). O que bem explicita o velado chamado de amor e de voluptuosidade com que a mulher atrai seu noivo e com que Adélia produz, por substituição, por metonímia, por deslocamento, por um jogo de esconde–esconde, a imprescindível função erótica da sua poesia que, segundo ela, em uma entrevista a Rubem Alves, ocorre “à revelia de mim”.
Matéria publicada na edição impressa #84 em agosto de 2024.
Chegou a hora de
fazer a sua assinatura
Já é assinante? Acesse sua conta.
Escolha como você quer ler a Quatro Cinco Um.
Faça uma assinatura anual com até 56% de desconto e ganhe uma ecobag exclusiva!
Entre para a nossa comunidade de leitores e contribua com o jornalismo independente de livros.