
Repertório 451 MHz,
A terra dá, a terra quer
Em raro registro, o pensador Antônio Bispo dos Santos, o Nego Bispo, contrapõe o modo de vida e os saberes quilombolas aos da sociedade colonialista
11abr2025Está no ar o 135º episódio do 451 MHz, o podcast dos livros. Esta edição traz uma conversa do pensador quilombola Antônio Bispo dos Santos, mais conhecido como Nego Bispo, com a colunista da Quatro Cinco Um Bianca Tavolari. O encontro, uma rara oportunidade de ouvir o intelectual e ativista piauiense, aconteceu durante A Feira do Livro de 2023, na mesa “Da praça pública ao quilombo”, poucos meses antes da morte de Bispo, aos 63 anos, em dezembro daquele ano.
Na conversa, Nego Bispo discute ideias presentes em seu A terra dá, a terra quer (Ubu e Piseagrama, 2023), coletânea de ensaios em que discute a ideia de contracolonização, também chamada de contracolonalismo. No livro e nesta edição do 451 MHZ, ele contrapõe o modo de vida quilombola ao da sociedade colonialista e fala sobre território, pensamento circular e a cosmologia quilombola. O episódio foi realizado com o apoio da Lei Rouanet – Incentivo a Projetos Culturais.
Nascido no vale do rio Berlengas, no quilombo Saco Curtume, interior do Piauí, Nego Bispo foi o primeiro membro de sua família a ser alfabetizado. Antes de A terra dá, a terra quer, ele publicou Quilombos, modos e significados (2007) e Colonização, quilombos: modos e significações (2015), nos quais traduziu para a escrita os saberes do seu povo e seu pensamento contracolonizador. Também escreveu artigos e poemas e, como ativista dos direitos quilombolas, mediou as relações de sua comunidade com o Estado.
Conhecida dos leitores da revista dos livros, Bianca Tavolari é colunista da editoria especial As Cidades e as Coisas da Quatro Cinco Um. Especialista em meio urbano e nas relações sociais e culturais que envolvem as cidades brasileiras, ela também é professora da Fundação Getulio Vargas (FGV), diretora do Mecila, centro de estudos em ciências humanas e sociais na América Latina, e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
Ao apresentar Nego Bispo, Bianca Tavolari lembrou da forma como ele mesmo se definiu numa entrevista que deu pouco antes do encontro n’A Feira. “Não sou escritor, sou uma pessoa que escreve para estabelecer uma fronteira entre os saberes. Sou um lavrador que também lavra palavras”, disse o líder quilombola.
A terra dá, a terra quer
Na conversa, Bispo explica a origem do título de seu livro. “Eu estava na roça chupando uma manga, a manga caiu no chão, eu me apressei para pegar [a fruta] e, caçando água para lavar, Mãe Joana [sua avó] disse: ‘deixa essa manga aí, ela é da terra. A terra dá, a terra quer, vá tirar outra manga para você’”, conta, demonstrando o jeito quilombola de se relacionar com a natureza.
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“Quando a gente diz ‘a terra dá e a terra quer’, a gente está dizendo que a terra, e tudo que existe na terra, é uma biointeração, é uma vida orgânica, cíclica”, continua Bispo. “Então, esse título, ele é orgânico, porque ele não está dizendo ‘preserve o meio ambiente’. Ele está dizendo ‘se relacione com o ambiente’. O ambiente não precisa dos nossos cuidados, o ambiente é quem cuida de nós, e nós nos relacionamos com o ambiente”, explica.
Questionado por Tavolari, Bispo ainda comenta a frase “eu não sou humano, eu sou quilombola”, que também aparece no livro. Para o pensador, o humano é o “euro-cristão-monoteísta”, que se vê como superior aos animais e à natureza. Já ele, como quilombola, convive em harmonia com os demais seres naturais.
“Os seres humanos acabaram criando uma situação que só serve para eles. Aí, como eu não gosto de viver só, eu me afastei dessa aura humana para me reeditar na aura animal. Nós estamos precisando animalizar a humanidade para desumanizar a animalidade”, defende.
Contracolonialismo
Crítico da ideia de decolonialidade ou descolonialidade, Bispo explica seu pensamento que propõe o enfrentamento da colonização, o que ele chama de contracolonialismo. “A decolonialidade é uma teoria, não tem trajetória histórica”, diz. Segundo o pensador, só quem foi colonizado é que pode ser descolonizado — o que não se aplicaria a comunidades quilombolas e indígenas, por exemplo.
Em contraposição ao que considera falta de trajetória histórica do movimento decolonial, ele cita populações que resistiram à colonização desde a chegada dos europeus às terras brasileiras, séculos atrás. “Se você me perguntar qual é a trajetória histórica dos contracolonialistas, nós somos quilombolas, indígenas, quebradeiras de coco, marisqueiras, marisqueiros, pescadores, agroecologistas”, enumera. “Nós temos uma história para contar.”
O pensador quilombola fala ainda sobre a circularidade do pensamento de seu povo. “O saber de vocês [populações urbanas] é sintético, o nosso é orgânico. Vocês pensam de forma linear, por isso chegam ao limite. Nós pensamos de forma circular, por isso a nossa vida não tem limite. A roda é começo, meio, começo; ela não tem fim”, ilustra, para em seguida citar manifestações culturais populares: “a capoeira é circular, o samba, o batuque, até meu cabelo quando cresce é circular. É assim que eu compreendo a vida, e é assim que eu tento me localizar nela: na circularidade”.
Relações com o ambiente
Durante o bate-papo, Nego Bispo também fala sobre as relações humanas com a natureza e o meio ambiente. Defendendo os saberes da agroecologia, embora criticando a apropriação dela pelas universidades e sua comercialização, ele destaca a importância de nos relacionarmos de maneira equilibrada com a terra e outros seres vivos.
Bispo usa como exemplo a “sexualidade” das plantas. “A árvore transa com tudo. Ela é poligâmica. E faz tudo com raízes na terra, sendo alimentada por ela para nos alimentar, e retroalimentando-a. É uma biointeração.Se você não der, a terra também não dá”, diz.
Mais na Quatro Cinco Um
A terra dá, a terra quer, de Nego Bispo, foi resenhado pelo jornalista Jefferson Barbosa na edição #72 da revista dos livros. Ele afirma que Bispo “nos mobiliza a entender, a partir de elementos da própria terra e da existência humana, como o sistema criado pelas sociedades ocidentais vai contra a nossa própria existência”. Leia a íntegra aqui.
O livro também foi apresentado por Bianca Tavolari na coluna A Cidade e as Coisas no texto “De volta à terra”. Para a pesquisadora, Nego Bispo “subverte a forma como pensamos o espaço urbano e nos relacionamos com o cosmo”. Leia mais aqui.
Além da seção que edita na Quatro Cinco Um, Tavolari já participou de outras edições do 451 MHz. Sua estreia foi em 2020, no 13º episódio do podcast, para apresentar o espaço que passava a editar na revista.
Ano passado, ela voltou ao programa no episódio “Metrópoles em disputa”, em que conversou com a arquiteta e escritora Joice Berth sobre as questões em jogo nos disputados espaços das cidades. Ouça aqui.
O melhor da literatura LGBTQIA+
Este episódio traz uma sugestão literária da antropóloga e escritora Aparecida Vilaça, colaboradora da Quatro Cinco Um e autora, com Geoffrey Lloyd, do recém-lançado Onças e borboletas: diálogos entre antropologia e filosofia (Todavia). Aqui ela indica o romance De quatro, de Miranda July, que saiu em 2024 pelo selo Amarcord, da editora Record, com tradução da poeta Bruna Beber.
“Embora o livro De quatro, de Miranda July, tenha sido apontado em críticas como tendo a perimenopausa como eixo narrativo, eu o li como um livro tremendamente sexy, em que o tesão e a abertura para a experimentação sexual dão a tônica das reflexões e ações da protagonista”, afirma a antropóloga.
De quatro foi tema do 128º episódio do 451 MHz, que contou com a participação da própria Bruna Beber e de Branca Vianna, apresentadora de podcasts como o Rádio Novelo Apresenta e o Fio da Meada. Elas falam justamente sobre as mudanças no corpo e na cabeça feminina que chegam na meia-idade. Ouça aqui.
Confira a lista completa de indicações do podcast 451 MHz no bloco O Melhor da Literatura LGBTQIA+.
O 451 MHz é uma produção da Associação Quatro Cinco Um.
Apresentação: Paulo Werneck
Produção: Brenda Melo, Vitor Pamplona e Beatriz Souza
Edição e mixagem: Igor Yamawaki
Identidade visual: Quatro Cinco Um
Para falar com a equipe: [email protected]
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