Repertório 451 MHz,

Matemática para quem é de humanas

Marcelo Viana e Bernardo Esteves discutem os desafios da divulgação científica e a falsa dicotomia entre ciências exatas e humanas

21mar2025

Está no ar o 132º episódio do 451 MHz, o podcast dos livros. Esta edição traz uma conversa entre o premiado matemático Marcelo Viana, diretor do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, o IMPA, e o jornalista Bernardo Esteves, que escreve sobre ciência e meio ambiente na revista Piauí. Os dois discutem no programa os desafios da divulgação científica no Brasil e a separação, considerada um equívoco por Viana, entre ciências exatas e ciências humanas.

O encontro aconteceu n’A Feira do Livro 2024, durante a mesa “Matemática para quem é de humanas”, que abriu a programação da terceira edição do festival literário na manhã do dia 30 de junho do ano passado. O matemático e o jornalista falaram para uma plateia cheia no Auditório da Praça, montado na praça Charles Miller, em frente à Mercado Livre Arena – Pacaembu, em São Paulo. Este episódio foi realizado com apoio da Lei Rouanet – Incentivo a Projetos Culturais.

Um dos matemáticos mais importantes do país, Marcelo Viana é colunista da Folha de S.Paulo e estava lançando n’A Feira Histórias da matemática: da contagem nos dedos à inteligência artificial, que saiu pela Tinta-da-China Brasil, selo editorial da Associação Quatro Cinco Um. O livro é uma coletânea das colunas publicadas por ele no jornal e trata desde as origens da matemática na Antiguidade até os desafios da disciplina hoje em dia. Com linguagem simples e divertida, o autor conta episódios envolvendo grandes pensadores como Newton e Fibonacci, explica teorias e ainda traz problemas famosos da matemática.

Já Bernardo Esteves, que mediou a conversa, é jornalista especializado em ciência e meio ambiente e ainda professor da UFMG, a Universidade Federal de Minas Gerais. Além das reportagens que escreve na Piauí, ele também apresentou entre 2020 e 2022 o podcast sobre ciência A Terra é redonda (mesmo), produzido pela revista. Em 2023, lançou Admirável novo mundo: uma história da ocupação humana nas Américas (Companhia das Letras), sobre a disputa científica em torno da chegada do Homo sapiens no nosso continente.

O bate-papo entre os dois trata, além da falsa ideia de que deve existir uma separação entre as ciências humanas e as exatas, da importância de divulgar a ciência de maneira a inspirar o público a se interessar por uma área muitas vezes vista como árida.

Linguagem universal

Segundo Marcelo Viana, a matemática não deveria ser vista como um campo isolado do conhecimento, mas como uma linguagem universal que permeia todas as áreas do saber. “A matemática sempre foi uma parte fundamental da cultura humana. Separá-la das ciências humanas e sociais é um erro que limita nossa capacidade de compreender o mundo de maneira mais profunda”, defende. 

Explorando seu ponto de vista, ele lembra ao longo da conversa que, durante séculos, grandes pensadores como Descartes e Newton transitavam livremente entre filosofia, matemática e ciências naturais, uma prática que deveria ser resgatada. “É claro que, à medida que os campos foram se ampliando, foi acontecendo uma especialização. Não era mais possível alguém conhecer toda a matemática”, continua. 

“Mas acho um erro acreditar que, porque eu sou de exatas, não preciso entender Picasso; ou, porque sou de humanas, a Segunda Lei da Termodinâmica não me diz respeito. Isso tolhe e empobrece aquilo que a gente pode fazer e aquilo que a gente é como ser humano”, diz.

Carl Sagan e Neil deGrasse Tyson (Reprodução)

Para Bernardo Esteves, uma maior popularização da matemática e das ciências exatas é possível por meio da divulgação científica. Ele pontua que, apesar do aumento do interesse pelas ciências nas redes sociais e na mídia de forma geral, a matemática ainda sofre com o estigma de ser inacessível. “O desafio está em transformar conceitos abstratos em histórias que cativem as pessoas, algo que nomes como Carl Sagan e Neil deGrasse Tyson fizeram com a astronomia”, exemplifica, citando os cientistas americanos que se tornaram celebridades midiáticas por causa de seu trabalho de divulgação do conhecimento sobre o cosmos. 

Outros divulgadores científicos que o matemático considera exemplares são Tatiana Roque, cientista e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro que escreveu O dia em que voltamos de Marte: uma história da ciência e do poder com pistas para um novo presente (Crítica, 2021), e o escritor britânico Simon Lehna Singh, autor de O último teorema de Fermat (Record, 1998), sobre a resolução de um dos maiores problemas matemáticos de todos os tempos.

Marcelo Viana acredita que a distância entre o público e a matemática é um problema estrutural e cultural. “Nós temos essa ideia de que a matemática pertence apenas a um grupo seleto de pessoas, e isso afasta muita gente logo na infância. Mas a verdade é que ela é uma linguagem universal, presente em tudo que fazemos, da economia ao design gráfico”, explica. 

O matemático ainda reforça que a ciência dos números precisa ser melhor comunicada para que as pessoas percebam sua aplicabilidade e relevância cotidiana. “Se um aluno entender que a matemática está na música que ele ouve, na estrutura dos filmes que ele assiste, tudo pode mudar”, argumenta.

Esteves ressaltou o desafio de comunicar ciência de forma acessível e envolvente. “A matemática ainda é vista como um conhecimento fechado, restrito a poucos. O nosso papel como divulgadores é romper essa barreira e mostrar que ela está presente em todos os aspectos da vida cotidiana.” O jornalista ainda defende que a internet e os novos formatos de comunicação, como podcasts e vídeos, podem ampliar o alcance da ciência e atrair públicos diversos, incluindo aqueles que nunca tiveram acesso a um ensino matemático de qualidade.

Inteligência artificial

Durante a conversa, Viana também fala de como a inteligência artificial tem impactado a matemática e o raciocínio lógico. Ele explica que, apesar da IA já ser utilizada na validação de teoremas e na otimização de cálculos complexos, a criatividade e a intuição matemática ainda são essencialmente humanas. “A inteligência artificial pode nos ajudar, mas ela não substitui a capacidade humana de formular questões e enxergar padrões onde ninguém viu antes”, avalia.

Bernardo Esteves e Marcelo Viana no Palco da Praça na Feira do Livro 2024 (Filipe Redondo/Divulgação)

O diretor do IMPA ainda destaca que a matemática não é apenas um conjunto de regras mecânicas, mas um campo profundamente ligado à intuição e à imaginação humana. “Se um dia uma IA puder fazer uma descoberta matemática genuinamente original, teremos que redefinir o que significa ser um matemático”, pondera.

Mulheres na matemática

Um dos desafios mais urgentes da matemática no Brasil, segundo Viana, é a inclusão de mais mulheres na área. “Eu pergunto às meninas medalhistas da Olimpíada de Matemática como elas explicam a baixa participação feminina, e elas sempre dizem: ‘os meninos são muito mais incentivados’”, conta. Ele enfatiza que essa disparidade não é uma questão de talento, mas sim de oportunidades e representatividade. “Precisamos mudar a maneira como a matemática é ensinada e encorajar mais meninas a enxergarem nela um campo de possibilidades, e não um espaço inatingível.”

Viana ressalta que esse é um dos objetivos da Olimpíada Brasileira de Matemática. Voltada para escolas públicas, a competição é uma forma de levar oportunidades a pessoas do país todo, diz o matemático, que dá como exemplo o caso da deputada federal Tabata Amaral. 

“A Tabata vem de uma família simples, e a vida dela mudou quando fez a prova da Olimpíada e ganhou a medalha de prata. No ano seguinte, ela ganhou ouro. É uma pessoa que estaria em outro lugar se não tivesse sido jogado um holofote sobre o talento dela para a matemática. E depois ela enveredou por outras áreas”, lembra.

Mais na Quatro Cinco Um

Histórias da matemática: da contagem nos dedos à inteligência artificial, de Marcelo Viana, foi resenhado no ano passado para a revista dos livros por Fernando Tadeu Moraes. “A impressão é que o autor está ao nosso lado, tentando explicar por que a matemática o fascina tanto”, ele escreve. Leia aqui a íntegra da resenha e também confira um trecho do livro.

Em 2020, o próprio Viana resenhou o romance A fórmula preferida do professor (Estação Liberdade), escrito pela japonesa Yoko Ogawa e traduzido para o português por Shintaro Hayashi. “Surpreende a ousadia de Yoko Ogawa ao fazer da matemática o catalisador da evolução de emoções e relações pessoais”, afirma. Leia mais.

Bernardo Esteves participou do 97º episódio do 451 MHz falando sobre Admirável novo mundo: uma história da ocupação humana nas Américas. Além da pesquisa que originou o livro, ele explicou no programa a importância de arqueólogos como Niède Guidon, criadora do Parque Nacional da Serra da Capivara, e Eduardo Neves, renomado pesquisador da USP. Leia mais e ouça o episódio aqui.

Ainda no tema da arqueologia, Esteves também participou da mesa “Admirável novo mundo” n’A Feira do Livro de 2024, em que debateu avanços recentes no pensamento arqueológico com a jornalista Adriana Abujamra, autora da biografia Niède Guidon: uma arqueóloga no sertão (Rosa dos Tempos).

O melhor da literatura LGBTQIA+

O episódio traz uma sugestão da cantora, autora e atriz Letrux, uma das artistas mais marcantes da música independente contemporânea. Além de sua trajetória na música e nas artes cênicas, Letrux transita com força pela literatura, tendo publicado Zaralha: abri minha pasta (Guarda-Chuva, 2015) e Tudo que já nadei: ressaca, quebra-mar e marolinhas (Planeta, 2021). Aqui, ela indica a coletânea de poemas Haverá festa com o que restar, de Francisco Mallmann, publicado pela Urutau Editora em 2018. 

“Acho a poesia do Francisco muito específica, muito genuína, muito curiosa. Francisco me faz rir, me faz chorar, e eu acho isso muito importante. Quando qualquer ação artística, eu quero um passeio completo das sensações, sabe? Não quero só rir, nem quero só chorar. Eu quero ser perturbada, incomodada, acariciada, machucada, e acho que esse livro me causa tudo isso”, conta Letrux.

Confira a lista completa de indicações do podcast 451 MHz no bloco O Melhor da Literatura LGBTQIA+

CRÉDITOS

O 451 MHz é uma produção da Associação Quatro Cinco Um.

Apresentação: Paulo Werneck
Produção: Brenda Melo
Edição e mixagem: Igor Yamawaki
Identidade visual: Quatro Cinco Um
Para falar com a equipe: [email protected]